“Existem três tipos de empresas (e pessoas): as que fazem as coisas acontecerem, as que ficam vendo as coisas acontecerem e as que perguntam: o que aconteceu?”
Philip Kotler
A despeito da paralisia coletiva provocada pelas turbulências nacionais e as transformações mais recentes mundo afora, a partir da análise de informações que circulam no meio, principalmente acadêmico, algumas mudanças silenciosas nas características demográficas populacionais, nas políticas de saúde e nos processos internos dos hospitais estão em pleno avanço sem que os principais formadores de opinião ainda se deem conta.
Num mercado que envolve negócios de vários zeros e que emprega uma porção substancial da força de trabalho nos diversos países, como o nosso, o hospital, enquanto organização, tem um papel de absoluto destaque, sendo muitos os motivos histórico-sociais que os transformaram em referência no tratamento das doenças em geral. A dinâmica assistencial no modelo adotado pelos governantes ao longo de décadas privilegia o hospital como centro de referência para a prestação dos serviços de saúde, tendo como motor a geração de receita operacional a partir dos processos relacionados à ocupação de suas unidades de internação com pacientes em seus mais diversos problemas.
A sofisticação tecnológica crescente incentivada e incorporada por seus gestores, a criação e oferta de novos serviços de continuidade da assistência, assim como a concentração de muitos quadros técnicos de referência numa mesma estrutura predial, aliados aos já conhecidos fatores demográficos em transformação (tais como envelhecimento populacional e maior prevalência de doenças crônicas), acabaram por criar no imaginário popular e no das pessoas que têm uma relação próxima ao poder (estes muitas vezes com uma visão distorcida, intencional ou não, do que vem a ser assistência à saúde de qualidade), a firme proposição de que essas estruturas bastam para atender às necessidades da população. Como conseqüência, devem ser privilegiadas com relação a investimentos e políticas de beneficiamento e, em alguns casos, de tratamento fiscal diferenciado. Aqui, com alguns pormenores gerados pela contemporaneidade, os argumentos se repetem da mesma forma com tem sido há quarenta anos, fazendo prosperar por tempo indeterminado a manutenção daquele modelo hospitalocêntrico tão duramente contestado por aqueles que acreditam em outras formas de se gerar saúde do ponto de vista de coletividade.
Porém eis que uma transformação está em curso.
De forma gradual o hospital, da forma como o concebemos, encontra-se numa curva descendente cada vez mais inclinada enquanto local para internação de pacientes. Sem levar em consideração seus outros papéis assimilados ao longo do tempo, pode-se afirmar, sem medo de errar, que a não ser que sua estrutura seja exclusivamente ambulatorial (o que foge ao conceito lato de hospital) ou seu modelo de negócio seja exclusivamente do tipo “Day Hospital”, dentro de poucas décadas a disponibilidade de leitos hospitalares será drasticamente reduzida. Senão vejamos:
(Extraída de Mendes ACG et al: “Assistência pública de saúde no contexto da transição demográfica brasileira: exigências atuais e futuras” em Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 28(5); 955-964, mai 2012).
Ainda sob esse aspecto, atualizando esses dados para 2016, a tendência se mantém, conforme tabela abaixo (elaborada pelo autor):
Ano | População (segundo IBGE) | Leitos disponíveis para internação (SUS) | Leitos disponíveis para internação (privados) | Total de leitos disponíveis | Relação leito por habitantes |
2009 | 191.481.045 | 338.461 | 122.867 | 461.328 | 1/565 |
2015 | 202.768.562 | 311.917 | 129.884 | 441.801 | 1/650 |
Fonte: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Ministério da Saúde e Federação Brasileira de Hospitais
Há uma diferença de -13,0% entre os dois períodos quanto à relação de leitos por habitante, ou seja, com a redução do número de leitos ocorre maior concentração de habitante por leito. A variação entre a quantidade total de leitos SUS entre os dois períodos foi de – 7,8%. Por outro lado, cresce a oferta de leitos em hospitais privados (+5,4%), talvez motivado pelo aumento em números absolutos da quantidade de usuários de planos de saúde à época da avaliação, sem, entretanto, suprir o déficit registrado no setor público em números absolutos.No restante do mundo a tendência de redução e leitos também é observada de maneira contundente, como na União Européia:
(extraído de Gadelha, Paulo (coordenador): “Análise do Subsistema de Serviços em Saúde na Dinâmica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde”);
(Extraído de “Conjuntura – Saúde Suplementar” de abril de 2016. Instituto de Estudos de Saúde Suplementar – IESS)
Ainda segundo essa fonte, isso pode, pelo menos em parte, justificar o porquê economias como a nossa apresentam um estranho comportamento em relação a outras quanto ao gasto por beneficiário do sistema suplementar per capita versus Produto Interno Bruto – PIB per capita: aumenta o gasto com a saúde das pessoas à medida em que a quantidade de riquezas no país diminui exponencialmente. Os custos elevados consequentes inibem, dentre outras coisas, investimentos e geração de novos leitos em unidades já consolidadas, ou a construção de novas unidades, contribuindo ainda mais para o déficit de leitos observado:
(Extraído de “Conjuntura – Saúde Suplementar” de abril de 2016. Instituto de Estudos de Saúde Suplementar – IESS)
E o Corpo Clínico dos hospitais como se encaixa nessa nova conjuntura? Após essas considerações, arrisco dizer que com o estreitamento dos ambientes físicos e funcionais para o desenvolvimento da atenção hospitalar a pacientes internados, os papéis dos hospitais devem assumir outros valores, e com eles o próprio papel do Corpo Clínico. É possível e provável que num espaço de uma década, a persistirem os mesmo fatores que impedem a progressão necessária na quantidade de leitos hospitalares efetivamente operacionais (a despeito da necessidade imperiosa da manutenção de políticas públicas, e mesmo privadas, de promoção da saúde e prevenção da doença), o Corpo Clínico de hospitais passe a ser uma categoria elitizada, altamente especializada, fechada em seu círculo, e em extinção. Por outro lado, os dados de literatura pressupõem que novas formas de cuidado devem ser desenvolvidas ou criadas, determinando que, ao largo de qualquer reflexão acerca de mercado de trabalho, os pacientes continuarão sob cuidados eficazes.
Para os novos profissionais entrantes desse mercado, resta viver um paradoxo: de um lado uma população com doenças da modernidade, crônicas e cada vez mais prevalentes, e que requerem com freqüência internação hospitalar em função de suas complicações freqüente; um mercado superaquecido do ponto de vista de opções de diagnóstico e tratamento, e ambiente crescente de inovação e especialização. E do outro, falta de hospitais para acompanhar pacientes internados, mesmo os “seus pacientes”.
Vamos pensar em alternativas? Vamos fazer acontecer?