20 coisas que os médicos não contam para você
21/03/2016
Midsection rear view of male doctor with fingers crossed

Fonte: Super Interessante – 16/03/2016
A medicina é imprescindível. Mas não é perfeita. Conheça o outro lado da profissão mais importante do mundo
Por Reportagem – Fernanda Ferrairo | Entrevistas – Bruno Garattoni
Eu me chamo Fernanda Ferrairo. Tenho 28 anos e sou médica desde 2010. Acho a medicina a mais linda das profissões. Mas nada, nem mesmo ela, é perfeito – e eu senti isso na própria pele. Meu primeiro texto para a SUPER, publicado há um ano, fala da maior luta da minha vida: a luta contra uma doença incurável que me foi causada por um erro médico (acesse abr.ai/minhavidacomdor). Mas a reportagem que você lerá a seguir não é motivada por rancor. Ela é motivada pela constatação, compartilhada entre cada vez mais médicos, de que há algo errado no sistema de saúde atual – e investiga, com o máximo de objetividade, os pontos e os porquês disso. E as possíveis soluções.

1 – 30% dos gastos são desnecessários e 20% das cirurgias também
No réveillon de 2011, o carioca Marcio Alexandre Calhau, de 40 anos, sentiu uma forte dor nas costas. Procurou um médico, que o diagnosticou com hérnia de disco. Ele começou a tomar anti-inflamatórios e fazer fisioterapia. Quatro meses depois, não estava melhor, e o médico sugeriu um procedimento simples: injeções de corticoide na coluna. Marcio ficou dois dias no hospital e saiu com mais dores do que antes. No total, passou por oito intervenções cirúrgicas nos últimos quatro anos. Cada uma delas piorou um pouco seu estado. “Virou um pesadelo. Sinto dores agudas e constantes”, relata. Hoje ele não trabalha e mal sai de casa. Seu caso ilustra um grande problema da medicina moderna: o excesso de procedimentos. Entre os médicos, essa tendência é chamada de “procedimentalização”. Ela é consequência de dois fatores. O primeiro é a própria evolução da medicina, que dispõe de cada vez mais ferramentas para tratar as pessoas (e as utiliza mais vezes).

O outro é a própria estrutura do sistema de saúde, que coloca incentivos financeiros para que haja mais procedimentos (pois os hospitais são pagos de acordo com a quantidade deles, e não com a saúde do paciente). Uma investigação feita em 2012 pelo jornal USA Today, que analisou os prontuários de milhares de pessoas, apontou que até 20% das cirurgias realizadas são desnecessárias (principalmente em áreas como ortopedia e cardiologia). Segundo a American Board of Internal Medicine, que criou um projeto para coibir o excesso de operações, 30% dos gastos em saúde vão para procedimentos desnecessários. No Brasil, o hospital Albert Einstein criou o Projeto Coluna, em que médicos oferecem uma segunda opinião para pacientes aos quais foi sugerido fazer cirurgia. Em 60% dos casos, a pessoa acaba desistindo da operação.

2 – Médicos e médicas correm muito mais risco de suicídio
Um estudo conduzido pela American Foundation for Suicide Prevention1, em 2008, descobriu que o índice de suicídios entre médicos e 70% maior que a população em geral. Entre médicas, 400% maior. “Há fatores que geram ansiedade e depressão, como alto número de horas trabalhadas, stress e a responsabilidade de lidar com tragédias humanas”, diz o psiquiatra Mauro Aranha, vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). Além das durezas clássicas da profissão, o alto índice também é sintoma de uma piora nas condições de trabalho, com jornadas cada vez mais árduas e difíceis.

E isso leva alguns a buscar válvulas de escape. Uma pesquisa com 7 mil cirurgiões nos EUA2 constatou que 13,9% deles têm problemas com álcool – o dobro da população. “O estudo avaliou cirurgiões, mas a gente vê isso em todas as áreas”, diz Alexandrina Meleiro, da comissão de saúde mental médica da Associação Brasileira de Psiquiatria.

Fontes 1 Experts Addres Risk of Physician Suicide. JAMA 2005, 294. 2 Prevalence of Alcohol Use Disorders Among American Surgeons. Michael Oreskovich e outros, American College of Surgeons.

3 – Ficar internado tem seu próprio risco
Quando ficamos muito doentes, vamos ao hospital. O problema é que, lá, entramos em contato com outras pessoas que também estão muito doentes, e elas podem nos passar infecções – até porque, quando estamos debilitados, nosso sistema imune tende a estar enfraquecido. Alguns procedimentos são campeões em causar infecções, como a introdução de sondas uretrais e catéteres venosos centrais. O último levantamento do CDC (Centers for Disease Control and Prevention, dos EUA), que analisou os hospitais americanos durante o ano de 20111, estima que 4% dos pacientes, ou 648 mil pessoas, desenvolvam as chamadas infecções nosocomiais, popularmente conhecidas como infecções hospitalares, no país a cada ano. Desse grupo, cerca de 75 mil acabam morrendo (o estudo não especifica a causa mortis, que em muitos casos não é a infecção em si).

Fontes 1 Multistate Point-Prevalence Survey of Health Care-Associated Infections. Shelley Magill e outros, CDC.

4 – Os médicos lavam pouco as mãos
Um estudo1 realizado na Suíça avaliou 2.834 situações em que profissionais de saúde deveriam ter higienizado as mãos. Eles só fizeram isso em 48% das vezes. “No Brasil, fica em torno de 50%”, afirma Thais Guimarães, diretora da Sociedade Paulista de Infectologia. “Os médicos, e os profissionais do período noturno, fazem menos [higienização]” que os demais, conta ela. Isso se deve a uma combinação de sobrecarga e esquecimento, e é ruim para o paciente – o estudo suíço provou que a má higienização eleva as taxas de infecção hospitalar.

Fontes 1 Compliance with hand disinfection and its impact on hospital acquired infection. Didier Pittet, Universidade de Genebra.

5 – Boa parte dos médicos admite esconder coisas – e alguns já mentiram aos pacientes
“Todos os erros médicos significativos devem ser revelados aos pacientes.” Esse era um dos itens de um questionário1 respondido por 1.891 médicos americanos. 65,9% escolheram a opção “concordo totalmente”. Os demais, 34,1%, preferiram a outra opção: “concordo em parte ou discordo”. O questionário também perguntava: “No último ano, você deixou de informar plenamente um paciente?”. 19,9% admitiram que sim. Além disso, 28,4% assinalaram ter “revelado, intencionalmente ou não, informações dos pacientes para uma pessoa não autorizada” – e 11% confessaram ter dito alguma mentira a um paciente no ano anterior. O próprio estudo aponta a principal causa: medo de ser processado. Ele é mais forte nos EUA, mas também é debatido entre os médicos brasileiros – que se referem a ele como “judicialização da medicina”. Um grande entrave na relação médico-paciente – que deveria ser pautada pela confiança absoluta.

Fontes 1 Survey Shows That At Least Some Physicians Are Not Always Open Or Honest With Patients. Lisa Iezzoni e outros, Harvard Medical School.

6 – RCP (ressuscitação cardiopulmonar) é bem pouco eficaz
Esse procedimento é usado quando uma pessoa está com insuficiência respiratória e/ou cardiovascular – e sempre aparece em filmes e séries de TV. Infelizmente sua taxa de efetividade é pequena. Um estudo1 japonês de 2012 mostrou que 18% das pessoas que recebem massagem cardíaca fora do ambiente hospitalar (na rua, por exemplo) retomam a pulsação – mas apenas 5% estão vivas um mês depois.

Fontes 1 Prehospital Epinephrine Use and Survival Among Patients With Out-of-Hospital Cardiac Arrest. Akihito Hagihara e outros, Universidade de Kyushu.

7 – Os planos de saúde devem fortunas ao governo
Segundo o IBGE, 28% dos brasileiros têm plano de saúde. Mas essas pessoas nem sempre são atendidas em hospitais particulares – às vezes o plano se recusa a cobrir certos procedimentos, ou não possui os equipamentos necessários. A pessoa procura os hospitais públicos. E aí os planos são obrigados, por lei, a ressarcir o SUS. Mas isso nem sempre acontece. Um levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor revelou que, no ano passado, os planos pagaram R$ 621 milhões ao SUS – mas deveriam ter pago R$ 1,6 bilhão. E há quem diga que o rombo possa ser ainda maior. “A dívida de inúmeros convênios com o governo é homérica. Estamos falando de bilhões”, afirma a vereadora Patrícia Bezerra (PSDB-SP), que preside uma CPI sobre os planos de saúde. “Os usuários estão sendo lesados, os prestadores de serviço estão sendo lesados, o SUS está sendo lesado”, diz ela. É mais um sintoma dos problemas no sistema de saúde.

8 – Muitos médicos têm conflitos de interesse
Desde 2010, o governo americano obriga as empresas farmacêuticas a registrar seus gastos com a classe médica. Os números mais recentes são de 2014. Nesse ano1, as empresas declararam US$ 6,45 bilhões. A maior parte vai para o financiamento de pesquisas científicas (pagando os salários dos médicos envolvidos). Mas US$ 2,5 bilhões se destinam a “despesas gerais” – que incluem material e eventos de divulgação, brindes, refeições e viagens a congressos para médicos, que também podem ser recrutados para fazer palestras pagas. E isso pode ser um grande problema para os pacientes, pois pode afetar a isenção profissional do médico – e criar um incentivo para que ele receite mais medicamentos da empresa com a qual mantém relações. Foi o caso do psiquiatra Daniel Carlat, que escreveu a respeito no New York Times. Ele conta ter recebido proposta de uma multinacional farmacêutica. Daria palestras, a outros médicos, sobre um novo antidepressivo. Receberia US$ 500 a cada uma. Ao mesmo tempo em que dava as palestras, Carlat pesquisou por conta própria sobre o medicamento. Descobriu que algumas pessoas que o tomavam desenvolviam hipertensão, efeito que os outros antidepressivos não tinham. Também viu seus próprios pacientes tendo problemas (quando tentavam parar com a droga, apresentavam fortes sintomas de abstinência). Decidiu rasgar o contrato. No Brasil, a relação entre laboratórios e médicos é menos transparente. “Nós pedimos à indústria que nos enviasse os nomes dos médicos [com os quais ela tem relação]. Nenhuma empresa respondeu”, conta o cardiologista Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp.

Fontes 1 CMS Open Payments Dataset. http://www.cms.gov/OpenPayments

9 – Saúde gratuita custa caro
Pouquíssimos países oferecem assistência médica gratuita a toda a população. Tanto que ano passado o New England Journal of Medicine, uma das principais publicações médicas do mundo, publicou um artigo1 elogiando o SUS – cuja abrangência costuma espantar os habitantes de países ricos. “O que mais me impressionou foi o fato de ser tudo de graça. Nos EUA, eu receberia uma conta de dezenas de milhares de dólares”, conta o americano Dylan Stillwood, que mora no Brasil há quatro anos e fraturou a mandíbula durante uma viagem a Pernambuco (ele foi operado no Hospital Regional do Agreste, em Caruaru). Ok, ele teve sorte. Todo brasileiro sabe que faltam médicos, equipamentos e condições na rede pública de saúde. E isso tem a ver, sim, com corrupção e má gestão. Mas também existe outro motivo, muito mais forte: a matemática.

O Brasil tem a sétima maior economia do mundo, mas também tem a quinta maior população. Divida uma coisa pela outra e você constatará que, em PIB per capita, somos apenas a 74ª economia do planeta. Isso significa que, mesmo cobrando impostos consideráveis, o Estado brasileiro arrecada pouco: tem US$ 5.700 para gastar, por ano, com cada habitante2 – para custear todos os serviços públicos (não só a saúde), em todas as esferas de governo. Pode parecer bastante, mas não é. O Reino Unido, cujo sistema de saúde inspirou o nosso, arrecada quase o triplo (e os países com os melhores serviços públicos passam de US$ 20 mil). ”A proposta do SUS é extremamente avançada, comparável às melhores do mundo. Mas precisa de um mínimo [de financiamento]”, diz o cirurgião Jorge Curi, conselheiro do CFM. Para funcionar com tanta abrangência, o sistema precisaria de muito mais dinheiro, que teria de vir de algum lugar: de outros serviços públicos, do aumento de impostos ou do crescimento do PIB per capita.

Fontes 1 Brazil’s Family Health Strategy. James Mackino e outros, 2015. 2 Fundo Monetário Internacional (PIB de 2014 em dólares PPP, corrigidos pelo poder de compra de cada país) e Heritage Foundation, 2015 Index of Economic Freedom (carga tributária em % do PIB).

10 – Nem toda doença deve ser tratada
Quanto mais precoce é a detecção de um tumor, maiores as chances de sucesso no tratamento. Fato. Mas nem sempre vale a pena tratar. Alguns cânceres, como o de pâncreas e o glioblastoma (no cérebro), são tão agressivos que vão matar o paciente de qualquer jeito. O câncer de pâncreas já mata 75% das pessoas no primeiro ano. Cinco anos após o diagnóstico, 94% (o glioblastoma, 90%). Nesses casos, tentar lutar contra a doença pode ser inútil, e só piorar a qualidade de vida da pessoa ou fazê-la morrer mais rápido – já que certos tratamentos são mais agressivos que o próprio tumor. A terapia superagressiva pode ser um problema até no mais comum dos cânceres: ode mama. Detectá-lo nos estágios iniciais é, sim, fundamental. O problema é que, na busca por esse diagnóstico, a medicina pode passar da conta. Foi o que revelou um estudo1 que analisou os índices de câncer de mama, por 14 anos, em países que começaram a oferecer mamografias preventivas. Com mais exames, aumentaram os diagnósticos, o que é bom. Mas, para cada mulher que teve a vida salva, outra passou por tratamentos desnecessários – em 52% dos casos, o tumor era inofensivo. Na Inglaterra, o governo recomenda que o exame de antígeno prostático (PSA) não seja feito por todos os homens – pois isso pode levar a falsos diagnósticos de câncer de próstata, com tratamentos desnecessários. A cultura de tratar tudo, sempre, pode ser especialmente danosa a um sistema de saúde gratuito e universal, como o SUS.

Fontes 1 Overdiagnosis in publicly organised mammography screening programmes. K. Jorgensen e outros, The Nordic Cochcrane Centre.

11 – Ser operado na sexta, ou no fim de semana, é mais arriscado
Foi essa a conclusão de um estudo1 inglês que analisou 4,1 milhões de pacientes submetidos a cirurgias eletivas (que não são de emergência). Em cirurgias realizadas na sexta¬feira, o risco do paciente estar morto um mês depois era 44% maior. Para cirurgias feitas no fim de semana, 82% maior (em ambos os casos, comparando com as segundas-feiras). O estudo cita como possíveis causas o cansaço da equipe e o menor número de médicos e profissionais no hospital durante o fim de semana.

Fontes 1 Day of week of procedure and 30 day mortality for elective surgery. P. Aylin e outros, Imperial College London.

12 – A indústria gasta mais em marketing do que em pesquisa
A cada ano, o mundo gasta aproximadamente US$ 1 trilhão em medicamentos. Você leu certo – trilhão. A indústria farmacêutica movimenta somas gigantescas de dinheiro, em parte graças a produtos caros. O remédio de maior faturamento global é o anti-inflamatório injetável Humira, que custa US$ 1.500 mensais – e, em 2014, trouxe US$ 12,5 bilhões a seu dono, o laboratório Abbott1. A indústria justifica os preços alegando que desenvolver remédios é um processo longo e dispendioso (porque a esmagadora maioria das drogas fracassa durante os testes, e não é lançada). É verdade. Mas uma meia-verdade. Das dez maiores empresas do setor, nove investem mais em marketing do que em pesquisa científica – 30% a 80% mais2. Tem dado resultado: segundo um levantamento da revista Forbes, o setor farmacêutico é o mais lucrativo de todos, com 21% de margem média de lucro (à frente até dos bancos e das empresas de tecnologia, com 17,3% e 16,1%).

Fontes 1 EvaluatePharma. 2 GlobalData.

13 – Alguns médicos recebem propina
Como em qualquer profissão, os médicos também erram. Mas – como em qualquer profissão, também – há quem aja de má-fé. “É muito comum vermos médicos que solicitam uma prótese ou material cirúrgico especial, de uma marca específica. Muitas vezes nem é a melhor ou a mais indicada ao caso, mas eles não aceitam outra”, conta o auditor de um grande plano de saúde, que também é médico e falou à SUPER com a condição de não ser identificado. “É que o fabricante desses materiais paga comissão ao médico”, explica. Também há fraudes envolvendo exames. “A esmagadora maioria dos exames de ressonância magnética de joelho é desnecessária. Mas a clínica que realiza esses exames muitas vezes repassa um percentual do lucro aos médicos”, diz o auditor. “Muitas vezes há exagero na solicitação de exames, com interesse econômico”, afirma o cardiologista Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp.

14 – Alguns medicamentos muito usados podem induzir diabetes – e até câncer
Mulheres na menopausa que fazem uso de uma certa classe de anti-hipertensivos (os bloqueadores de canais de cálcio) possuem maiores chances de desenvolver câncer de mama. Foi o que concluiu uma pesquisa1 que acompanhou 2.763 mulheres entre 55 e 74 anos de idade, das quais 1.907 tiveram câncer e 856 não. As mulheres que usavam esse tipo de remédio por dez anos ou mais tinham risco 2,5 vezes maior de desenvolver câncer de mama. E um conjunto de estudos sugere2 que o uso de antidepressivos pode induzir diabetes tipo 2. É o que acreditam pesquisadores da Universidade de Southampton, na Inglaterra, que analisaram 22 trabalhos sobre o assunto. Concluíram que alguns antidepressivos, especialmente se tomados em altas doses e por tempo prolongado, alteram o metabolismo da glicose – o que elevaria a incidência de diabetes. Mas é preciso fazer mais estudos para entender o possível mecanismo disso.

Fontes 1 Use of Antihypertensive Medications and Breast Cancer Risk Among Womem. Christopher I. Li, Fred Hutchinson Cancer Research Center. 2 Antidepressant Medication as a Risk Factor for Type 2 Diabetes. Katharine Barnard e outros, Southampton University.

15 – Os médicos detestavam o Mais Médicos. Agora, querem entrar
Quando o programa foi criado, em 2013, os médicos brasileiros protestaram. Criticaram as condições, o salário e a importação de profissionais de outros países – contratados sem ter os diplomas revalidados no Brasil. Hoje, há 18 mil médicos no programa, em 72,8% das cidades brasileiras. Na última expansão, ano passado, 100% das vagas foram preenchidas por brasileiros – e o novo edital recebeu a inscrição de 12.791 médicos (10,9 candidatos por vaga). Os médicos continuam reclamando das condições de trabalho no programa. Mas querem entrar nele porque, ao participar, ganham um bônus que ajuda a ser aceito em programas de residência médica.

16 – As gigantes farmacêuticas sabem quais remédios você toma
Em seu relato, o psiquiatra Daniel Carlat (veja texto 8) faz uma revelação perturbadora. Segundo ele, o contrato com o laboratório farmacêutico estabelecia que a empresa teria acesso a dados de seus pacientes – diagnósticos, tratamentos e evolução de cada pessoa. O objetivo disso é saber se o médico está de fato receitando o medicamento daquela empresa. “É a chamada garimpagem de dados de receita”, diz. Os laboratórios contratam empresas especializadas nesse processo – que vão até médicos e farmácias coletando receitas. “A maioria dos laboratórios mantém convênios com as farmácias e obtém cópias das receitas dos médicos”, afirma Braúlio Luna Filho, presidente do Cremesp. A questão é especialmente delicada no caso de medicamentos psicoativos, como calmantes e antidepressivos – se você toma, provavelmente preferiria que isso ficasse somente entre você e seu médico. O Conselho Regional de Farmácia diz que a cópia de receitas é proibida.

As empresas também tentam aliciar os próprios pacientes. Quem toma remédios de uso contínuo pode se cadastrar, pelos sites dos laboratórios, informando o CRM (número de registro) do médico que os receitou – e, em troca, obter descontos no preço dos medicamentos. “O paciente tem autonomia. Mas nós não aprovamos esse comportamento”, afirma o cardiologista Henrique Batista, secretário-geral do Conselho Federal de Medicina.

17 – A indústria farmacêutica esconde os estudos que não dão certo – e manipula os que dão
A criação de novos remédios é financiada, principalmente, pela indústria farmacêutica. E é natural que seja assim. Mas, como a indústria controla os estudos, pode interferir neles. Nos EUA, os laboratórios são obrigados a publicar todos os resultados de seus testes em um banco de dados mantido pelo governo. Mas uma análise feita em 2013 e publicada no jornal científico Nature constatou que apenas 50% são publicados. O resto, não – e isso pode ter consequências terríveis. Em 2004, o laboratório GlaxoSmithKline foi processado pelo Estado de Nova York, que acusou a empresa de omitir dados apontando que o antidepressivo Paxil causava pensamentos suicidas em crianças. A empresa fez um acordo judicial, e liberou os dados.

Os resultados também podem ser, pura e simplesmente, manipulados. Um dos casos mais famosos envolve o Vioxx, remédio indicado para tratar artrite e dores menstruais. Foi um sucesso, chegando a render US$ 2,5 bilhões anuais a seu criador, o laboratório Merck. Só tinha um problema: se usado por mais de 18 meses, dobrava o risco de ataque cardíaco. A coisa foi parar na Justiça, onde um cardiologista afirmou que a empresa sabia do risco – mas omitiu a informação. Para piorar. O médico americano Scott Reuben, autor de 21 estudos sobre o remédio, admitiu ter forjado dados (enganando o próprio laboratório). A empresa fez um acordo judicial, se comprometendo a pagar US$ 950 milhões em indenizações, e tirou a droga do mercado.

18 – Médicos cometem 12 milhões de erros por ano – só nos EUA
Três estudos estimaram a quantidade de erros médicos nos EUA. Sua conclusão1: 12 milhões por ano. Os pesquisadores chegaram a essa estimativa, que se refere a erros de diagnóstico (não inclui outros tipos de erro, como em cirurgias), analisando 2.544 casos. Os erros afetam 5,08% do total de diagnósticos. Segundo o estudo, a probabilidade de eles causarem dano aos pacientes é de 50%. “O número de denúncias ao Conselho tem aumentado. Em 1993, recebíamos 5 por dia. Hoje são 18″, diz Bráulio Luna, presidente do Cremesp. Errar é humano. Mas a cultura da infalibilidade médica, não – e ela é, inclusive, apontada por médicos como uma causa do índice de suicídios na profissão (leia texto 2).

Fontes 1 The frequency of diagnostic errors in outpatient care: estimates from three observational studies involving US adult populations. H. Singh, A. Meyer e E. Thomas. Baylor College of Medicine e Universidade do Texas.

19 – A medicina não sabe como muitos remédios funcionam. E alguns simplesmente não funcionam
Você provavelmente já tomou paracetamol quando estava com febre. Já deve ter usado algum relaxante muscular para aliviar dores no corpo. Quem sabe tenha tomado isotretinoína, na adolescência, para tratar acne. Ou faça uso, hoje, de algum antidepressivo. Mas esses medicamentos têm uma característica em comum que você não conhece: seu “mecanismo de ação não é plenamente conhecido”. Leia bulas de remédio e você encontrará essa frase em muitos, mas muitos deles. Ela significa que a ciência não sabe, com exatidão, o que eles fazem dentro do organismo. Sabe quais são seus efeitos (tanto os desejados quanto os colaterais), comprova sua eficácia e segurança, geralmente possui teorias sobre o mecanismo de ação. Mas, a rigor, não sabe como aquilo funciona. Só sabe, empiricamente, que funciona. Ela também sabe que alguns remédios, inclusive, não funcionam. Ou até funcionam, mas da mesma forma que uma pílula de farinha funcionaria: como placebo. Um estudo1 de 2014 que avaliou antidepressivos concluiu que a maioria deles era indistinguível do placebo. Em tese, esses remédios deveriam aumentar os níveis de serotonina e/ou dopamina no cérebro. Algumas das drogas estudadas, entretanto, não demonstraram superioridade clinicamente significativa ao placebo (pílulas inócuas, sem efeito). Os pacientes que tomaram placebo também apresentaram níveis aumentados de serotonina – só que ela foi produzida pelo próprio organismo, sem nenhum medicamento.

Fontes 1 Antidepressants and the Placebo Effect. I. Kirsch e outros, Harvard Medical School.

20 – O sistema como um todo precisa mudar. E existe um caminho
Os médicos entrevistados pela SUPER foram unânimes ao reconhecer problemas – e sugerir mudanças no próprio sistema de saúde. Tudo começa nas faculdades de medicina, com mais controle sobre a qualidade do ensino e novas abordagens, como disciplinas relativas ao trato com as pessoas. Depois vêm a valorização da profissão e o fortalecimento da confiança do paciente no médico (que também tem de saber conviver com as informações, nem sempre corretas, que os pacientes acham no Google). E termina numa mudança de foco – com a troca da lógica atual, voltada a procedimentos, pela ênfase na prevenção. “Devemos investir a maioria dos recursos na atenção básica”, diz Maria do Socorro de Souza, presidente do Conselho Nacional de Saúde. Para que o sistema, hoje na doença, mire no que realmente importa: a saúde.





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