Os problemas da saúde nacional não podem ser solucionados apenas com mais investimentos. O volume de 9,5% do Produto Interno Bruto (PIB) que o país destina ao setor não está muito abaixo do que se vê entre as dez maiores economias do mundo, mas a questão é que o nosso sistema foi desenhado para oferecer atendimento universal, integral e gratuito. E, na outra ponta, o setor privado responde por 55% do total de investimentos contra 45% do setor público. Só que o setor privado atende 50 milhões de brasileiros, enquanto o público precisa cuidar dos outros 150 milhões.
Ainda assim, mais do que simplesmente aumentar o volume de investimentos públicos (medida considerada essencial pelos especialistas do setor), é preciso superar o ranço ideológico e estabelecer parcerias público privadas. Muitas vezes, o poder público e a iniciativa privada investem em ações semelhantes que, ao invés de se complementarem, conflitam umas com as outras. Isso porque não existe um planejamento que favoreça a economia de escala e compartilhamento da infraestrutura.
Pensando nisso, a Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP) preparou um livro de propostas de políticas públicas para o setor (disponível no anexo da reportagem). O Jornal GGN entrevistou, com exclusividade, o presidente do conselho da entidade, doutor Francisco Balestrin, que também é presidente eleito da Associação Mundial de Hospitais (IHF, na sigla em inglês).
Para ele, o modelo brasileiro, que busca operar diretamente no setor público, sem interferir e padronizar os serviços no setor público e privado, é pouco eficiente. Balestrin comparou ao sistema canadense, que também é gratuito e, no entanto, é oferecido pela iniciativa privada, com o governo definindo metas de assistência e qualidade. Ou seja, apenas por regulação, o governo consegue ditar os rumos da gestão.
Ele falou sobre a questão dos investimentos públicos e privados no setor; comentou as dificuldades financeiras dos planos de saúde e o aumento da demanda por serviços médicos como conseqüência do envelhecimento da população; fez um diagnóstico dos principais gargalos e propôs soluções.
Opinou ainda sobre alguns dos temas mais polêmicos nos últimos anos, como o programa Mais Médicos, do governo federal, e o ato médico, defendido pela categoria.
Abaixo, os principais trechos da entrevista:
Jornal GGN - Qual é o percentual do PIB brasileiro que é destinado ao setor da saúde? É suficiente?
Francisco Balestrin - O Brasil é um dos poucos países dentro das dez maiores economias do mundo onde o setor público é maior do que o setor privado.
Isso já traz dentro de si uma imensa injustiça social. Não pode um país como o nosso investir em saúde menos no setor público do que no setor privado. Afinal de contas, existe um franco desequilíbrio social e econômico no nosso país. O que deveria, na realidade, forçar, até por uma questão de justiça social, de políticas públicas de saúde, que o setor de saúde fosse maior no público do que no privado.
Eu fiz esse preâmbulo para dizer o seguinte: o total daquilo que se investe do PIB do país em saúde, hoje, é em torno de 9,5%. Isso dá mais ou menos uns R$ 70 bilhões.
Jornal GGN - Em investimento público?
Francisco Balestrin - Não. Então, desses recursos, 45% é público e 55% é privado. Sendo que 45% é para cobrir uma população de 150 milhões de habitantes e 55% para cobrir uma população de 50 milhões de habitantes.
Quando você pega essa distribuição do setor público, você vai ver que ele também é dividido em federal, estadual e municipal. São as três esferas de poder que investem. Hoje, na atual situação do país, quem mais investe em saúde no setor público são os municípios.
Jornal GGN - O modelo de financiamento determina um aporte mínimo em saúde de 15% das arrecadações dos municípios e 12% dos estados. A União não tem um percentual mínimo?
Francisco Balestrin - A União, pela chamada Emenda Constitucional 29, deveria investir sempre aquilo que foi investido no ano passado acrescido do crescimento do PIB.
Jornal GGN - E esse é o modelo ideal?
Francisco Balestrin - É. Mas o que houve é que isso também foi mudado. Foi mudado para uma outra emenda que obrigou o governo a investir, até 2020, 20% do PIB. 20% das receitas líquidas ele teria que investir em saúde. Hoje, o setor federal investe algo em torno de 1,6%.
Quando a gente diz que o Brasil investe 9,5%, nós não estamos muito distantes dos investimentos em outros países não. Você pega a França, que investe algo em torno de 10% a 11%. Os Estados Unidos, então, estão disparados, não faz nem sentido comparar, lá são 17% do PIB.
Mas nessas economias a saúde tem um apelo muito específico sob o ponto de vista de investimento público. Na média, os grandes países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, em todos esses países, algo em torno a 60 a 70% do investimento é público. Aqui é 45%.
Jornal GGN - Então, mais do que a relação investimento PIB, o problema do Brasil é que a origem desses investimentos é privada ao invés de pública...
Francisco Balestrin - Perfeito. E esse privado também precisa ser subdivido. Do mesmo jeito que no público eu apresentei para você o federal, estadual e municipal, o privado também é subdividido em: medicina suplementar, os chamados planos de saúde; e o chamado out of pocket, que é o dinheiro que a gente tira do bolso para comprar medicamentos, pagar exames que eventualmente não são cobertos por algum plano de saúde, tentar antecipar consultas que no SUS vão demorar muito...
Hoje em dia, para você marcar um procedimento oncológico, uma radioterapia, você chega às vezes a demorar um ano. Provavelmente nesse momento o câncer já evoluiu de tal forma que qualquer coisa marcada depois de tanto tempo não significa mais nada, já está sem recuperação. Então, as pessoas se antecipam.
Por isso que, hoje, no Brasil, o fenômeno das chamadas clínicas populares é exitoso. Não deveria ser. Eu que sou um cidadão brasileiro não precisaria pagar uma consulta se eu tenho SUS. O SUS tem três princípios básicos: o princípio da universalidade, ou seja, todo mundo tem acesso; a integralidade, que significa que todo mundo vai ter o atendimento integral para todas as suas necessidades; e a chamada equidade, que é tratar todos os cidadãos de forma igual.
Quando você pega um cidadão e não dá para ele acesso, você já acabou com a universalidade. Você o joga para uma clínica popular. Às vezes, a família faz vaquinha para poder pagar uma tomografia. Porque no estado o equipamento está quebrado, ou vai demorar seis meses para fazer, ou não tem o equipamento. Então, o que a família faz? Faz uma vaquinha para pagar por um serviço privado.
Jornal GGN - Como funcionam essas clínicas populares?
Francisco Balestrin - Elas procuram fazer o atendimento privado cobrando, teoricamente, preços razoáveis.
Jornal GGN - E aí elas ganham na escala?
Francisco Balestrin - É. Ganham na escala. A consulta é em torno de R$ 80 a R$ 100. Um exame de urina custa R$ 5, um exame de sangue custa R$ 8, ultrassom já custa R$ 30, um raio x custa outro valor... Ou seja, eles vão fazendo isso e vão viciando as pessoas a utilizar esse tipo de serviço.
As pessoas começam a fazer outros tratamentos que eles oferecem, por preços também razoáveis, fazem as divisões em parcelas. Quer dizer, é um mercado, do mesmo jeito que você tem hoje a 25 de Março que é um mercado popular para vender produtos de consumo, esse tal de consumerismo também chegou à saúde.
Então, essas clínicas populares se aproveitam, exatamente, daqueles que não têm planos de saúde e que apesar de serem cobertos pelo SUS, não têm acesso. Elas entram exatamente nessa oportunidade.
Jornal GGN - Aproveitando que o senhor falou sobre planos de saúde. A lógica dos planos de saúde é aquela do risco compartilhado. O usuário paga esperando não precisar utilizar e a não utilização da maioria é que viabiliza a cobertura dos que precisam. Esse sistema ainda está equilibrado? Porque nós temos visto operadoras quebrando, sendo compradas por outras maiores, planos individuais praticamente extintos. Tem um gargalo nos planos de saúde também no Brasil?
Francisco Balestrin - O que você falou é exatamente o mesmo sistema que acontece na previdência social brasileira. É um regime de solidariedade intergeracional. Aposta-se que você vai ter uma base grande de pagantes que não usam, ou usam pouco, para que se possa cobrir a ponta da pirâmide.
O que aconteceu no nosso país nos últimos anos é que houve um envelhecimento grande da população. O número de pessoas acima de 60 anos, consequentemente aquelas pessoas que estão mais necessitadas de utilização na área da saúde, e também na previdência social, cresceu demais. Hoje a gente já tem algo em torno de 10% da população. Espera-se que até 2020 seja quase 20% da população.
Então, mal comparando nós com outros países, da Europa, como a França, que primeiro ficaram ricos e depois envelheceram. Nós estamos envelhecendo sem ficar ricos, muito pelo contrário, estamos em um momento quase que desesperador da nossa nação do ponto de vista de riqueza social e riquezas a serem distribuídas.
Então, o que acontece? Você tem a base que precisa sustentar, só que com esse processo de instabilidade econômica, um número cada vez maior de pessoas sai dos planos. Ontem mesmo foi publicado que 750 mil pessoas deixaram os planos de saúde. O que faz com que essa base de contribuição diminua.
Por outro lado, não só algumas saíram como várias outras pessoas deixaram de entrar. Assim, o crescimento que vinha sendo em torno de 2% a 2,5% ao ano, que nos grandes períodos chegou a ser em torno de 4%, esse crescimento não está ocorrendo.
Então, essas carteiras estão perdendo um número grande de pessoas. E, além disso, você passa a ter um conjunto de pessoas que, não apenas pela idade, mas por aquilo que a gente chama de tripla carga.
São aquelas pessoas que aumentam as suas patologias, os problemas das chamadas doenças crônicas não transmissíveis, que são diabetes, problemas vasculares, que muitas vezes não têm a ver com a idade, mas têm a ver com sedentarismo, com outros hábitos de vida, como má alimentação.
Hoje, praticamente 10% da nossa população é diabética, por hábitos absolutamente inadequados, de alimentação, falta de exercício físico, ou seja, aquilo que os americanos chamam de moral hazard, estamos nós próprios nos agredindo. Isso aumenta o número de pessoas que precisam de saúde e aí acontece tudo isso que você está dizendo.
Por outro lado, nós estamos vivendo também no nosso país uma terceira transição, que é uma transição social, que a gente vê muitas pessoas sujeitas a traumas, acidentes com motocicletas, acidentes com automóveis e a própria violência social... De um lado você aumenta os níveis de estresse e de outro tem as agressões que as pessoas sofrem. Assaltos, atropelamentos, essas coisas.
Com tudo isso, está se desenhando um quadro em que aumenta o número de necessitados na área de saúde - seja nas populações mais velhas, seja nas mais jovens - e diminui o grupo de pessoas que podem contribuir. Ou seja, você passa a ter uma queda de resultado nessas empresas. E consequentemente o equilíbrio econômico e financeiro delas está ameaçado. Essa é uma grande verdade.
Jornal GGN - O problema está restrito aos planos de saúde?
Francisco Balestrin - Não. Há repercussão disso também nos hospitais. Os hospitais que atendem esses grupamentos de pessoas têm uma discussão muito grande e ativa com as operadoras. E eles estão sujeitos a aumentos de custos enormes. Pela primeira vez em 12 anos, os hospitais brasileiros tiveram resultados negativos, ou seja, perderam as suas margens.
Isso principalmente devido ao aumento enorme de custos em cima das tarifas públicas brasileiras. Energia, telecomunicações... Tudo que era tarifa pública aumentou 12%, a inflação foi de 10,61%. E nós conseguimos repassar 2% dos nossos custos. Então, você imagine o que está acontecendo no setor.
Jornal GGN - Existe também um índice específico do setor, a chamada inflação médica. O que compõe esse índice?
Francisco Balestrin - Você tem a inflação geral de qualquer nação, que a nossa no ano passado foi de 10,61%. O setor de saúde é acometido por alguns outros ofensores, que não são os ofensores do dia a dia da inflação normal.
Por exemplo, você tem sempre novas tecnologias que são colocadas à disposição. Dois tipos de tecnologias: as tecnologias medicamentosas, ou seja, novos tratamentos, novas drogas e novos procedimentos; e as tecnologias de novos equipamentos diagnósticos, novos equipamentos de intervenção.
Essas tecnologias têm um ritmo próprio de desenvolvimento e de crescimento. Então, elas oneram o setor de saúde e consequentemente oneram a sociedade que precisa de saúde. Então, além daquilo que você tem de crescimento da inflação, você tem esses novos ofensores.
E tem outro! A gente já falou bastante dele. Que é o fato de que com o envelhecimento da população, mais pessoas precisam utilizar o sistema de saúde. Como as pessoas mais idosas precisam usar mais o sistema, acrescenta-se na conta da inflação essa necessidade.
Jornal GGN - O próprio aumento da demanda pressiona a inflação médica...
Francisco Balestrin - Isso. Você mede a inflação médica a parte. Então, você tem a tecnologia, os medicamentos, o próprio aumento da demanda e a complexidade de outras demandas também. Isso faz com que a inflação médica seja maior.
Normalmente quem mede essa inflação médica é o próprio IPCA Saúde (Índice Nacional de Preços ao Consumidor). Eu acho que ele não é suficientemente acurado para apresentar isso. Mas tem certo índices que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) apresenta, e dá pra ver que ela procura cuidar bem disso.
Nesse ano que passou, o reajuste do setor de saúde foi de 13,55%, em uma inflação de 10,61%. Agora, vamos ver o que eles vão apresentar. Normalmente em maio ou junho eles emitem novos números. Que são aqueles que as pessoas olham para fazer o reajuste das suas carteiras individuais.
Jornal GGN - O país importa muitos equipamentos médicos e medicamentos ou existe uma produção nacional robusta?
Francisco Balestrin - Nós temos uma produção nacional importante. Mas quando você fala em tecnologia de ponta, muitas dessas tecnologias são desenvolvidas no exterior. Até porque elas exigem muitos investimentos.
O Brasil poderia estar praticando uma política de substituição dessas tecnologias, mas por incrível que pareça ele próprio investe contra essa política de inovação. Na medida em que ele não é organizado, não é estruturado, não existem clusters, como tem em outros países, de desenvolvimento tecnológico.
Embora a gente tenha um parque tecnológico interessante, ele muitas vezes não é de ponta, ele não é muito inovador. Ele faz produtos que servem para a maior parte dos hospitais, mas quando fala em inovação, acaba tendo que buscando no exterior.
E tem ainda a inovação para a tecnologia farmacêutica, onde a maior parte dos sais ainda é importada. Mesmo a chamada indústria de genéricos usa muito os sais importados.
Então, grosso modo, nós importamos algo em torno de 30% daquilo que utilizamos nos nossos hospitais.
Jornal GGN - E o país exporta também? Ou tem um déficit muito grande na balança comercial?
Francisco Balestrin - O Brasil exporta sim. Mas quando você compara a exportação com a importação existe um déficit muito grande.
Jornal GGN - Quais são os problemas para a inovação da saúde no país? Os financiamentos são inadequados, tem muitas barreiras regulatórias? Qual o diagnóstico da ANAHP?
Francisco Balestrin - Em linhas gerais eu diria para você o seguinte: quando você fala de inovação, ela nunca acontece de uma forma individualizada. E ela sempre acontece de uma forma objetiva.
Então, você precisa integrar todos os setores focados na área de inovação em um esforço de nação. Ou seja, como outros países fazem, eles desenvolvem clusters, de iniciativa pública, mas onde a iniciativa privada tem grande atuação. Porque você precisa tecer essas ações conjuntas entre o público e o privado.
Ao mesmo tempo em que você cria políticas fiscais e de incentivo, políticas regulatórias, que sejam favoráveis ao desenvolvimento da inovação. Nossas políticas regulatórias, hoje, conturbam a inovação no país, na medida em que elas são lentas. Demora muito para realizar qualquer tipo de tentativa de desenvolver uma nova droga ou uma nova pesquisa qualquer. Quando tem que passar pelos nossos órgãos regulatórios isso demora meses ou anos.
E mesmo quando entidades internacionais querem fazer essas pesquisas com o Brasil, elas não encontram eco de mais gente querendo fazer.
Jornal GGN - Quer dizer, não existe um ecossistema de inovação...
Francisco Balestrin - Mas nós temos que ter. Nós temos muitos órgãos hoje que conseguem trabalhar isso. Mas isoladamente. Porque as nossas políticas públicas acabam sendo muito burocráticas, com muitas barreiras, com muitas dificuldades.
Jornal GGN - Recentemente o governo aprovou o chamado marco regulatório da ciência, tecnologia e inovação. O setor de saúde é mencionado no texto como uma área estratégica. Esse marco realmente ajuda o setor? Qual é a importância dele para a saúde nacional?
Francisco Balestrin - Nós estamos terminando aqui a análise desse marco legal. Mas eu quero dizer que a priori ele não mudou muito as condições que eu falei pra você. Ele traz mais avanços no sentido de definir intenções e propostas de encaminhamento. Mas não houve nada de objetivo que possa mudar a história.
Jornal GGN - O marco menciona a possibilidade de garantir o desenvolvimento por meio de compras públicas. Ter demanda garantida é bom para o investidor. O caminho é esse ou a iniciativa ainda é insuficiente?
Francisco Balestrin - No fundo no fundo, por mais incrível que pareça, você tem um estímulo para a indústria estrangeira em contraposição à indústria nacional.
Jornal GGN - Por quê?
Francisco Balestrin - São as nossas políticas. Elas fazem com que, quando você vai fazer uma compra pública, acabe comprando de uma empresa estrangeira, que às vezes não precisa fazer nem licitação, porque é produtora única. Então, acaba tendo uma série de incentivos. Isso também de alguma forma atrapalha a indústria nacional.
Jornal GGN - Nós íamos perguntar para o senhor como é possível incentivar os investimentos privados na saúde. Mas parece que não é isso que a ANAHP defende. O ponto de vista da associação é mais pelo aumento dos investimentos públicos, ou pelo menos, já que o setor privado faz a maior parte dos investimentos, que ele participe de forma mais ativa da gestão. É isso?
Francisco Balestrin - O que a gente coloca são duas coisas. A primeira é que tem que ter um aumento sim de verbas públicas para o setor de saúde.
Nós somos uma entidade e fizemos esse trabalho que é uma proposta de saúde para o nosso país. Não é uma proposta de saúde para o setor privado. E nem isso nos interessa. A gente acredita, como em todos os outros países, na convivência entre esses dois setores.
Só que o setor público no nosso país é desprestigiado do ponto de vista de recursos financeiros. Tanto federal, quanto estadual, quanto municipal.
Nós colocamos isso claro na nossa proposta, que a melhor forma de fazer isso é integrar o setor público e o setor privado. Não há necessidade, muitas vezes, de estar fazendo novos investimentos públicos se eles podem ser feitos pelo setor privado. Não há necessidade, muitas vezes, de operar com o setor público se isso pode ser feito pelo privado. O setor público tem que cumprir o papel dele de dar acesso, de regular e, no caso das pessoas de maior necessidade, de financiar e de cobrar.
Ele vai fazer através de políticas públicas de saúde que levam em consideração só prestadores públicos de serviço? Ou se vai levar em consideração também o privado? O ideal é que ele assim o faça. Porque você tem muitos recursos no país que acabam sendo duplicados.
Você tem às vezes, numa mesma região, um hospital público do estado, um do município e ainda tem um privado. Para quê isso? E todos vazios, muitas vezes vazios. Ou desarrumados, ou desajustados.
Você tem equipamento público que não está sendo utilizado ou está sendo mal utilizado quando na verdade você tem recursos públicos destinados para isso. Você tem, por exemplo, recursos privados que poderiam estar sendo investidos, para construir, equipar e operar através do setor público.
Nós muitas vezes falamos do sistema canadense. Você sabe que lá no Canadá não tem nenhum hospital público?
Jornal GGN - E, no entanto, o atendimento é todo gratuito, não é?
Francisco Balestrin - Isso. O sistema lá é todo gratuito. Só que o operador é todo privado.
Jornal GGN - E o estado paga por consulta, por atendimento, por procedimento?
Francisco Balestrin - Não. Mais do que isso. O estado define o modelo assistencial. Por incrível que pareça, ele opera menos, mas é mais interferente. O que é melhor. É diferente do nosso que é menos interferente e quer ser mais operador. E não consegue fazer nem uma coisa nem outra.
O estado lá define o modelo de assistência que ele quer que seja prestado, define quais são as metas de assistência e as metas de qualidade que ele quer que sejam atendidas, ele cobra essas metas e paga.
Jornal GGN - Ou seja, só por regulação, ele consegue ditar os rumos da gestão...
Francisco Balestrin - Perfeito. Lógico. Pela definição do modelo. Quem define o modelo é ele.
Quem define o modelo de assistência privada no nosso país? Ninguém. Cada um faz do jeito que quer. Está errado. Quem define o modelo de assistência pública no nosso país dentro dos hospitais públicos? Cada um faz do jeito que quer.
Então, essa que é a grande questão. O poder público se ausenta daquilo que seria mais importante, que é a definição do modelo, das políticas públicas de saúde, do desenvolvimento institucional, do modelo de remuneração, da forma como a qualidade assistencial deveria ser perseguida, da forma como o cidadão deveria ser atendido, da segurança assistencial... Afasta-se disso e quer ele prestar assistência direta, contratando médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem...
Jornal GGN - Isso não reflete um pouco uma desconfiança mútua que existe entre o privado e o público aqui no país?
Francisco Balestrin - Reflete. Nós temos um ranço ideológico, que não é unidirecional não, é bidirecional, é do público para o privado e do privado para o público. Você tem razão. Nós só vamos conseguir mudar isso quando conseguirmos cada vez mais integrar os setores e as pessoas.
No fundo no fundo, se você pegar o nosso livro, tudo o que nós fizemos tem a finalidade única de atender o cidadão. E essas pessoas fazerem valer a sua vontade por meio de agências que estejam realmente incumbidas de desenvolver novas políticas públicas de saúde, um novo modelo de organização...
Jornal GGN - Então, é necessário pensar mesmo em parcerias público privadas, em favorecer a economia de escala, dividir a infraestrutura. As propostas vão nesse caminho?
Francisco Balestrin - Isso. Nosso caderno de propostas fala detalhadamente sobre isso.
Jornal GGN - Essa falta de uniformidade deve trazer uma série de problemas até para o desenvolvimento, não? Como é que informatiza, por exemplo, um sistema de saúde que não é uniforme. Nós ouvimos falar sobre a necessidade de criar um cadastro único de pacientes. Tem que existir um esforço também do governo para uniformizar os processos?
Francisco Balestrin - Perfeito. Se você não tem uma proposta única de homogeneização naquilo que você faz, se você não tem uma definição clara de padronização de procedimentos, produtos e processos, você não consegue ter, por exemplo, um sistema onde você tenha interoperabilidade e integração. Eles são completamente desintegrados e não podem ser intercambiados uns aos outros.
Então, se você for a qualquer outro lugar que não seja aquele que está acostumado - e isso vale para o público e para o privado, não é só para o público não - ninguém consegue descobrir o que você teve, a sua vida pregressa, o que aconteceu, onde é que você passou, que doenças você já teve, quanto você já gastou, a que procedimentos já foi submetido... É um horror.
Jornal GGN - E não existe nenhum esforço nesse sentido? Essas certificações todas que nós ouvimos falar, nacionais e estrangeiras, elas não exigem dos hospitais nenhum processo de uniformização?
Francisco Balestrin - Quando você passa por um processo de certificação, que no setor de saúde nós chamamos de acreditação, em cima disso você tem vários modelos, mas o que você busca nisso é exatamente essa uniformização e definição dentro das instituições.
Então, o hospital é acreditado. Isso significa que os modelos dele que têm a ver com estruturas, processos e resultados assistenciais, já estão bem definidos. Inclusive, o sistema de informática que ele usa para atender dentro da instituição. Mas ele não conversa com outros hospitais que não sejam da própria rede dele. Ele não conversa com a rede assistencial privada, por exemplo, do Brasil.
Hoje, tem esforços dentro da Agência Nacional de Saúde Suplementar no sentido de padronizar duas coisas: os procedimentos e os produtos. E mais do que isso, padronizar a forma através da qual os hospitais encaminham as suas cobranças e as suas informações técnicas não só para a Agência, mas também para as operadoras. São sistemas que estão sendo desenvolvidos há muitos anos.
E no governo federal também. Existem nomenclaturas que são definidas. Existem no mundo várias linguagens que são utilizadas. Agora, tudo isso custa muitos recursos e você tem que necessariamente ter uma dedicação ao desenvolvimento disso. E integrar, de novo, o público e o privado.
Outros países já fizeram. Nós quando fizemos o livro branco buscamos o auxílio de uma empresa de consultoria espanhola. E lá eles já ultrapassaram isso. Lá a gente fala exatamente como eles fizeram isso.
Jornal GGN - Então, já existe um modelo que poderia servir de ponto de partida, nem que fosse para adaptar e criar um modelo próprio...
Francisco Balestrin - Eu julgo que sim. Não é plugin, né? Eu imagino que demore anos para que se consiga fazer isso. Mas tem que começar a fazer.
Jornal GGN - Nós queríamos falar também sobre a questão regional. A concentração de médicos nas regiões sul e sudeste e nos grandes centros urbanos é um problema muito antigo. Nós ouvimos falar sempre que existe um déficit de profissionais em áreas rurais e mesmo nas periferias dos grandes centros. O governo veio com o programa Mais Médicos para tentar atacar o problema. Foi uma solução adequada? Que outra iniciativa poderia ser mais permanente?
Francisco Balestrin - O Brasil não é o único país do mundo que tem grande área. E nem o mais complicado de integrar.
Vamos de novo ver o exemplo do Canadá. É um país de grandes proporções, como o nosso, tem áreas que são muito piores do que as nossas, porque você tem gelo, dificuldade de chegar etc. E também tem esse problema, tem concentração de profissionais médicos nas grandes capitais. A grande concentração está em Toronto, em Vitoria, em Ottawa, Montreal. E mais do que isso, está na costa leste. Na costa oeste tem grandes cidades que também têm grandes concentrações.
Como é que eles resolvem isso? Primeiro, não está escrito em nenhum lugar do mundo que saúde se faz com médicos. Desculpe-me, eu sou médico, mas falo isso de uma forma bem peremptória para você. Em nenhum lugar do mundo se diz que é o médico que provê saúde. É óbvio que ele é o agente nuclear disso. As intervenções, os grandes cuidados, são feitos por médicos. Eles estudam para isso.
Mas você tem um conjunto de outros profissionais, que são na minha percepção muito bem treinados e competentes, que poderiam estar exercendo esse papel também de prover saúde. Ou seja, de ter um primeiro acesso a essas pessoas, de cuidar dessas pessoas. Então, essa é uma forma: você saber claramente que saúde é feita por um time, não por apenas um profissional.
Isso é algo que nós médicos, aqui no Brasil principalmente, precisamos começar a aprender cada vez mais. Saúde é time.
Jornal GGN - Mas parece que a multidisciplinaridade não é mesmo muito respeitada por aqui. O ato médico, por exemplo, que era uma proposta defendida pela categoria, ia um pouco contra essa ideia de trabalho em equipe...
Francisco Balestrin - Ele na realidade foi muito corporativista.
Mas vamos lá, quando você traz profissionais de Cuba, você está procurando cobrir esses vazios sanitários, que poderiam estar sendo preenchidos por outros profissionais. E não necessariamente apenas por um médico. Mas tem certas coisas que, o próprio médico diz, só ele pode fazer.
Você traz um profissional de Cuba, que também é médico. Então, não há porque criticar a vinda desses profissionais. Até porque, o que a gente percebe hoje, é que o sistema conseguiu ser tão atrativo que muitos profissionais que estão participando são brasileiros.
Então, me parece que é uma alternativa que foi positiva sob vários aspectos. O primeiro aspecto é que ela estimulou uma super discussão no nosso país em relação a isso, a ponto de nós, hoje, quase dois anos depois, ainda estarmos discutindo isso. Então, propôs essa discussão. Segundo, cobriu os chamados vazios sanitários com um profissional que pelo menos é um profissional que tem, em algum lugar, uma formação médica. Essa é uma condição positiva.
O que outros países fizeram, além disso, que é uma outra coisa que nós precisaríamos pensar, foi que... De novo, não é o hospital que provê saúde. Do mesmo jeito que não é o médico o único agente promotor da saúde, não é o hospital, a instituição melhor para se promover saúde. Hospital é uma instituição para se curar de doenças.
Então, o que você não pode ter na cabeça dos mandatários públicos... Parece que todos pensam igual... Quando o prefeito vira prefeito, ele quer construir um hospital. Aí ele constrói hospitais de 15 leitos, 20 leitos, 30 leitos, que são inviáveis. O grande problema no Brasil hoje, é que nós temos 6300 hospitais e fecha um por semana.
Por quê? Porque eles são todos inviáveis. Você mesmo já deu a dica antes. Quando fala do hospital, você tem que ter uma relação custo benefício adequada, tem que ter volume. Como é que você tem volume em um hospital de 30 leitos?
Jornal GGN - Sem economia de escala, não tem como administrar...
Francisco Balestrin - Exatamente. Como é que você treina pessoas, faz programas conjuntos, compra bem? Não existe isso. Então, o que esses países todos fizeram? Eles fizeram uma coisa um pouco diferente. Deixaram só grandes hospitais, hospitais de média complexidade e grande complexidade, e montaram redes logísticas de transporte dessas pessoas.
Na ponta, elas têm uma assistência básica e se precisar de qualquer outro tipo de assistência, têm redes logísticas de transferência.
Jornal GGN - Não existe algo parecido por aqui? No Hospital das Clínicas (HC) é possível ver ambulâncias com placas de diversos lugares...
Francisco Balestrin - Isso é uma coisa que a gente criou no nosso país que se chama ambulancioterapia. É uma forma desorganizada de fazer isso. No começo do dia, você enche a ambulância de pessoas, manda para São Paulo, passa o dia no HC e depois todos voltam para as suas cidades ganhando um lanche. Não é assim que se faz saúde.
Jornal GGN - Então, mais do que o transporte, tem que levar em conta toda a logística...
Francisco Balestrin - Não é só o transporte. O transporte é uma parte da logística. É preciso ter as instituições interligadas. Ter realmente um sistema de referência e contrarreferência. Não é pegar e colocar como motorista da ambulância o secretário da Saúde da cidade.
Tem até microônibus. Enche de doente, pára lá e o motorista fica comendo sanduíche na porta do HC esperando enquanto as pessoas tentam se virar por lá.
Jornal GGN - E aí sobrecarrega o hospital do grande centro...
Francisco Balestrin - Lógico.
Jornal GGN - E quais são os problemas do sistema de remuneração de procedimentos médicos?
Francisco Balestrin - Um dos aspectos críticos de qualquer sistema organizado é como você vai dar continuidade a ele em relação aos recursos que ele precisa. Recursos materiais, recursos tecnológicos e também recursos financeiros. A remuneração está dentro dessa perspectiva dos recursos financeiros.
Você tem não só a necessidade de recursos para sustentar novas tecnologias, novos equipamentos etc, mas de ter um sistema organizado para cobrar por aquilo que você faz.
Então, quando você fala do sistema público, você muitas vezes está falando de remuneração em cima de pacotes de procedimentos que são realizados. No privado, você trabalha muito mais com o que se chama fee for service, ou seja, pagamento por procedimento. Fez, recebeu. Deu uma injeção, recebeu pela injeção, fez uma consulta, recebeu pela consulta, fez uma cirurgia, recebeu pela cirurgia e assim sucessivamente.
Mal comparando, é quando você vai num restaurante e pega à la carte ou self service. O que diferencia um do outro? O sistema. Quando você vai no à la carte, você tem um sistema organizado para te atender. Quando você vai no self service, tem outro sistema. Tem menos garçons, você tem o buffet, ou seja, o sistema de atendimento é diferente.
Mesma coisa a saúde. Você primeiro precisa ter um sistema de atendimento diferenciado. O que você mede quando administra um buffet? Quantos buffets você vendeu, se as pessoas estão satisfeitas ou se elas não estão... É a mesma coisa na saúde. Quando as pessoas hoje vão a um hospital, seja ele público, seja ele privado, o que você mede é o quanto aquelas pessoas foram atendidas. Quantos dias ficaram internadas, que procedimentos fizeram e se saíram bem ou mal.
Quando você muda esse sistema e ao invés de atender as pessoas pelo episódio, você passa a atender pelo seu desfecho clínico, pelo resultado final, você pode remunerar isso de outra forma.
Jornal GGN - É melhor, então, remunerar pelo desfecho clínico?
Francisco Balestrin - Teoricamente seria melhor. Remunerar pelo desfecho clínico e pelo cuidado que você dá. Então, a assistência à saúde no nosso país precisa deixar de ser episódica e passar a ser uma assistência onde se busca os resultados no final.
Nosso modelo de remuneração hoje é muito ruim porque leva em consideração só o episódio. Nós precisamos introduzir ferramentas de gestão (o Brasil está muito atrasado em relação a isso) que possam ser utilizadas para fazer com que os hospitais sejam definidos de acordo com as suas complexidades e passem a cobrar também de acordo com as suas complexidades.
Jornal GGN - E que ferramentas seriam essas? Questionários de avaliação de qualidade, por exemplo?
Francisco Balestrin - Uma grande ferramenta que existe hoje, em inglês é chamada DRG (Diagnosis Related Group), ou Grupos de Diagnósticos Homogêneos, em português. Através disso você consegue saber O quanto um hospital atende casos mais complexos do que outro. E com isso você consegue desenhar o modelo de remuneração que busca ao final resultados para uns e para os outros.
Jornal GGN - Certo. Em que todos ganhem na escala, mas que os de alta complexidade ganhem mais por um atendimento mais complexo e menos frequente?
Francisco Balestrin - Isso. Só que isso tem a ver com o fato de que devemos ter um outro modelo assistencial. Que leve em consideração não apenas a pessoa que passa mal, que está doente, que vai ao pronto socorro. Mas aquela pessoa que entra no sistema de saúde através de um ambulatório, e vai se cuidando, até que apresente uma patologia para que você tenha o resultado assistencial em relação a ela.