“Vai haver pressão pela melhoria do SUS”
O desemprego levará mais cidadãos de classe média ao Sistema Único de Saúde. Segundo a advogada especializada em gestão pública, isso deve ter bons efeitos para todos os brasileiros
19/10/2015
A advogada Lenir Santos, especializada em gestão e Direito Público, participou  da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988. Há quase três décadas ela estuda as distorções que fazem do SUS um sistema menos eficiente e justo do que a população gostaria. Lenir, hoje professora visitante da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz acreditar que o maior uso do SUS pela classe média tradicional deve aumentar a pressão pela melhoria do serviço. Criadora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), uma entidade que propõe formas de aprimorar o desempenho de instituições de saúde públicas e privadas, Lenir publicou sete livros. O último, Judicialização da saúde no Brasil (Saberes Editora), trata das consequências do aumento das ações judiciais movidas por pacientes contra o Estado. Recentemente, Lenir ajudou a redigir o projeto de lei do deputado federal Odorico Monteiro (PT-CE), que pretende delimitar os tratamentos e serviços que o sistema público tem obrigação de oferecer. “Chegou a hora de dizer claramente que não é possível dar tudo a todos”,  diz ela.

ÉPOCA – A classe média sempre teve medo do SUS, mas o aumento do desemprego obrigará muita gente a depender exclusivamente dele. Qual será o resultado?
Lenir Santos – Haverá um aumento da demanda por atendimento e menos dinheiro para financiar o sistema. Em 2016, teremos uma redução de R$ 11 bilhões nas verbas federais destinadas ao SUS. Por lei, os municípios devem aplicar 15% de suas receitas em saúde. Os Estados, 12%. Se a economia vai mal, se o consumo cai, essas receitas também diminuem. Será um ano difícil, mas a chegada da classe média aos serviços públicos pode ter um efeito positivo: o aumento da pressão pela melhoria do sistema. A classe média precisa entender que o SUS não é só para a empregada. É para todos. A falta dessa sensação de pertencimento prejudica o sistema.

ÉPOCA – De que forma?
Lenir – A classe média acha que o SUS não é para ela. Quem gere o SUS também não o usa. Os administradores, as autoridades, no Judiciário, no Legislativo, todos têm plano de saúde. É muito diferente da Inglaterra, onde todos usam o sistema público e se orgulham dele. Até a princesa Kate Middleton teve um parto normal de 12 horas num serviço público e sem médico obstetra.

ÉPOCA – Toda a população usa o SUS de várias formas. Vacinação, transplantes, tratamentos não oferecidos pelos planos de saúde, coquetel contra a aids e vigilância sanitária são alguns exemplos. Mas, quando precisa de médico no dia a dia, a classe média foge do SUS porque acha que não encontrará bons serviços. Ela está errada?
Lenir – Não está. Todos queremos ter um bom atendimento. Claro que há problemas. O SUS está na pré-fila. Não chegou à era da fila. As pessoas vão ao serviço de saúde e não conseguem saber em que posição estão na fila. Não existe sequer uma previsão de quando serão atendidas. Tenho a esperança de que a classe média se interesse em discutir formas de melhorar os serviços e de financiar o sistema. Por medo do SUS, as pessoas pagam planos de saúde que, em muitos casos, oferecem serviços ainda piores. 

ÉPOCA – Falta rigor na fiscalização dos planos feita pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)?
Lenir – Sem dúvida. É bastante complicado ter uma agência reguladora cujos diretores têm vínculos com as operadoras. Se houvesse rigor, muitos planos não seriam sequer abertos. Também não teríamos tantas demandas judiciais. Qual é o resultado disso? Os clientes frustrados dos planos de saúde buscam atendimento no SUS. A lei prevê que as operadoras reembolsem o sistema público quando ele atende os clientes delas, mas esse ressarcimento nem sempre ocorre. Os planos privados precisam funcionar de acordo com regras rígidas e fiscalização efetiva. Saúde é área de relevância pública. Não pode ser tratada como um setor de mera exploração econômica, como se fosse uma fábrica.

ÉPOCA – A população se sente duplamente abandonada quando não encontra atendimento de qualidade no SUS nem nos convênios privados. Há solução?
Lenir – É preciso atacar o problema em duas frentes. Temos má gestão e má aplicação dos recursos, mas o subfinanciamento é real. Se o Brasil decidiu oferecer saúde universal para 200 milhões de pessoas, tem de ter o recurso suficiente. O país gasta por ano cerca de R$ 1.000 por habitante. É pouco. Teria de gastar, no mínimo, R$ 2 mil. Além disso, precisamos de uma reforma da administração pública que acabe com o controle burro. Os servidores controlam papéis que nem sabem se alguém vai ler. Em vez disso, tinham de estar controlando os resultados dos serviços. Não há planejadores. Há bombeiros da saúde. Vivem de apagar incêndio.

ÉPOCA – A quantidade de cidadãos que entram na Justiça para conseguir drogas e procedimentos não oferecidos pelo SUS aumenta ano após ano. Isso desorganiza qualquer planejamento. Como lidar com esse conflito?
Lenir – Alguns vácuos legislativos impedem que a chamada judicialização da saúde se resolva. Não é possível oferecer todo e qualquer recurso que um cidadão exija na Justiça. A saúde é um direito que custa. O céu não pode ser o limite. Nenhum país oferece tudo a todos. Toda nação com bom sistema público de saúde oferece apenas os tratamentos e procedimentos previstos numa lista. É assim no Reino Unido, na França, na Espanha, no Canadá. A lista permite que o Estado faça escolhas. O Brasil tem duas listas: uma de medicamentos essenciais (Rename) e outra de ações e serviços de saúde (Renases). O problema é que o Judiciário não reconhece essas listas. Os juízes continuam favorecendo pacientes que pedem produtos não oferecidos pelo SUS. Eles se baseiam no Artigo 196 da Constituição: “Saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. 

"Precisamos de uma grande reforma administrativa do setor público para acabar com o controle burro”

ÉPOCA – Por que os juízes não entendem que o dever do Estado é oferecer o que está definido nessas listas?
Lenir – O juiz lida com o sofrimento humano. Essas ações têm um apelo sentimental enorme. A pessoa está doente. O juiz pensa: “Não vou deixar morrer”. Os juízes deveriam considerar que todo direito que custa tem de ter uma delimitação. É preciso ter uma previsão orçamentária. É preciso ter noção do que é razoável exigir do Estado.

ÉPOCA – A senhora acha que algum governante assumirá o ônus político de dizer que não é possível dar tudo a todos?
Lenir – A solução é criar um pacto entre o Estado e a sociedade, por meio dos conselhos de saúde que já existem. Um projeto de lei do deputado Odorico Monteiro (PT-CE) delimita o que seria a chamada integralidade do SUS. Segundo o texto que ajudei a escrever, atenção integral à saúde seria oferecer o que consta nas duas listas: a Rename e a Renases. As liminares que os juízes concedem aos pacientes são especialmente danosas aos pequenos municípios. Elas desestruturam o SUS nesses lugares.

ÉPOCA – Como?
Lenir – O SUS é mantido pelas três esferas de governo: União, Estados e municípios. A responsabilidade dos municípios é garantir a atenção básica. Quando um juiz determina que uma cidadezinha pague um transplante, por exemplo, isso consome com um único paciente 30% dos recursos destinados a cuidar da saúde de milhares de pessoas. É fundamental definir o que o Estado garantirá a todos. E aquilo que for definido tem de ser realmente para todos – em quantidade e em qualidade.

ÉPOCA – Não é legítimo que um cidadão procure a Justiça quando precisa de um tratamento eficaz, previsto na lista do SUS, mas que o Estado não entrega?
Lenir – É justo que o Judiciário garanta o direito do cidadão se o Estado não estiver cumprindo o que as listas determinam. Na maioria dos casos, não é isso o que acontece. A indústria farmacêutica financia associações de pacientes para que eles exijam produtos que, muitas vezes, não estão sequer aprovados no Brasil. A judicialização foi criada para garantir justiça, mas na saúde ela promove mais desigualdade.

ÉPOCA – Por quê?
Lenir – O cidadão que recebe uma liminar judicial sai da fila. Passa na frente dos outros pacientes e conquista um recurso que não estará disponível para todo mundo. Isso fere o princípio constitucional da igualdade. Vivemos num país de profundos apadrinhamentos. Em muitos lugares, é o vereador quem arranja vagas no hospital. Esses abusos precisam acabar. Não é possível que a gente continue a se pautar pelo apelo emocional dos casos individuais. Estamos falando de um direito social numa área em que não podemos fazer uma garantia para um cidadão ao custo de prejudicar inúmeras pessoas. A judicialização desorganiza o gasto público. Chegou a hora de dizer claramente que o direito à saúde tem limite.

Fonte: Revista Época – 15.10.2015
 




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