As decisões em saúde, nas mais diversas áreas, nem sempre levam em consideração as evidências ou resultados de pesquisas científicas. Em políticas de saúde, por exemplo, elas podem seguir aprendizados globais no manejo de uma doença – neste caso, com a devida adaptação ao contexto local.
Para contextualizar, uma área bastante conhecida e mais antiga – surgida na década de 1970 – é a da Medicina Baseada em Evidências (MBE), relacionada à prática clínica, que prepara os médicos para tomarem decisões clínicas fundamentadas nas melhores evidências para indicar cirurgias, escolher os medicamentos mais adequados para cada caso etc. Algum tempo depois do nascimento da MBE, em lugares do mundo como Europa e Canadá, houve um entendimento, de maneira similar, de que as decisões de políticas de saúde também deveriam ser apoiadas por evidências. Nesse caso, não lidamos necessariamente com um médico, mas com um secretário de saúde que precisa enfrentar inúmeros problemas, tais como, por exemplo, combater uma epidemia de dengue, organizar o acesso a um pronto-socorro lotado ou controlar doenças como a tuberculose, auxiliando pacientes a não abandonarem o tratamento. A pergunta a ser respondida, nesses e em outros momentos, é: considerando o conhecimento disponível, quais seriam as decisões que poderiam tornar as ações mais efetivas para alcançar os resultados esperados?
Foi por questões como essa que surgiu o ESPIE | Gestão de Políticas de Saúde Informadas por Evidências – projeto que integra o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), por meio da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS) do Ministério da Saúde e com a participação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Sua finalidade é apoiar a formulação e implementação de políticas públicas de saúde informadas por evidências, para que os recursos aplicados sejam melhor aproveitados.
Na prática, os participantes do ESPIE – gestores e profissionais de saúde das diversas regiões do país – foram capacitados para identificar e analisar os problemas de saúde prioritários em seus locais e propor as melhores opções políticas para resolvê-los.
O nome, ESPIE, conecta-se a uma interface com um movimento mundial, caracterizado como Políticas Informadas por Evidências (PIE). Este termo descreve um conjunto de mecanismos no processo político-decisório que promove o uso de evidências – científicas ou de outras fontes confiáveis – durante o processo de priorização, formulação, implementação e avaliação de políticas em saúde.
A princípio, com o projeto, nosso objetivo foi capacitar profissionais de saúde em políticas informadas por evidências: foram mais de mil participantes treinados, de todas as regiões do Brasil, aplicando o que aprendiam em seus ambientes de trabalho. Também foram elaboradas as chamadas sínteses de evidências – documentos que sintetizam estratégias para enfrentar problemas prioritários de saúde pública, escolhidos pelos próprios alunos em suas áreas de atuação.
Em seguida, identificamos a necessidade de construção de ferramentas para auxiliar gestores a implementarem PIE em suas organizações. Dessa forma, os mais de mil egressos treinados foram convidados para uma avaliação sobre o que funcionou e como estava a implementação das políticas na prática. Além disso, fizemos uma revisão de como comunicar evidências a gestores e à população, e elaboramos um perfil de competências para profissionais de saúde, delineando habilidades que precisam ter para utilizar as evidências em seu dia a dia.
Adicionalmente, criamos um guia para apoiar os Núcleos de Evidências em Saúde (NEV). Hoje, há vários desses núcleos no Brasil, em secretarias estaduais e municipais, e em universidades, com profissionais especializados que buscam e constroem evidências para apoiar gestores nas tomadas de decisão.
Atualmente, e até 2026, o objetivo do projeto ESPIE é contribuir para o desenvolvimento de capacidades individuais e institucionais para que haja a implementação de processos de institucionalização de Políticas Informadas por Evidências em organizações do Sistema Único de Saúde (SUS). O intuito é tornar o uso de PIE uma prática rotineira, permanente e cotidiana em todos os setores de tomada de decisão nas organizações. Entre os objetivos específicos, está a elaboração de um guia sobre institucionalização de PIE e o apoio para um trabalho mais efetivo com algumas organizações e seus gestores.
Estão participando do projeto três secretarias municipais de saúde – Diamantino/MT, Souza/PB e Porto Velho/RO, três secretarias estaduais de saúde – Minas Gerais, Santa Catarina e Piauí, o Hospital Universitário de Dourados/MS e a Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde/DF. A ideia é que, desse trabalho, resulte um aprendizado que possibilite uma expansão futura para outras organizações.
Benefícios das políticas informadas por evidências na prática
E, afinal, quais problemas podem ser solucionados com políticas informadas por evidências? Por que, “no fim do dia”, isso é bom para a população?
Os benefícios à população são de várias ordens, envolvendo maior eficiência, eficácia e efetividade nas decisões. Isso porque, quando informadas pelas melhores evidências, produzem resultados mais positivos, resultando em otimização de recursos públicos, e mais efetivas, beneficiando concretamente a população a quem essas políticas se dirigem – e tendo, com isso, impacto positivo na redução de doenças e na diminuição da mortalidade.
Vamos tomar a prevenção e controle de tuberculose como exemplo. Mesmo sendo uma doença milenar, em muitos locais, em pleno século XXI, continua sendo um grave problema de saúde pública. Muitas pessoas adoecem, o bacilo continua circulando e os contactantes não procuram, como deveriam, os serviços de saúde. Neste caso, como as PIE podem ajudar para tornar a prevenção mais eficiente e o tratamento mais adequado?
Além de conhecer como os serviços organizam a linha de cuidado para enfrentar esse problema, que deve envolver desde os agentes de campo, até enfermeiros, médicos e outro profissionais responsáveis por esse cuidado, as PIE podem ajudar, oferecendo, por meio de buscas na literatura, o melhor conhecimento disponível de como outros países tiveram bons resultados com esse cuidado.
Isso resulta em usar evidências nacionais e internacionais de experiências que se mostraram bem-sucedidas, de modo a contribuir para, por exemplo, qualificar o trabalho de campo, diminuir o número de contactantes e para fazer as pessoas acometidos pela doença aderirem melhor ao tratamento. Se um país da África, por exemplo, teve bons resultados com inclusão de lideranças comunitárias na prevenção, ou um, da Ásia, com o uso de mídias sociais para uma melhor comunicação, essas podem ser pistas a serem pensadas por aqui. Deve-se sempre considerar a necessidade de adaptar essas evidências ao contexto e realidade locais. E não basta as soluções serem criativas e inovadoras. As PIE são orientadas por evidências de qualidade, que foram testadas e tiveram seu impacto comprovado.
Diversas outras questões, que fazem parte da realidade no nosso país, podem ser beneficiadas por decisões informadas por evidências. Por exemplo, o acesso das pessoas à atenção primária e à saúde da mulher; a redução na superlotação de um pronto-socorro; o combate à dengue; o controle da hipertensão arterial e do diabetes; tornar a saúde mais acolhedora e humanizada; melhorar a saúde do idoso, entre diversas outras. PIE pode contribuir para que muitos dos problemas que afligem nossa população possam ser enfrentados e solucionados ou minimizados.
*Sílvio Fernandes é médico especialista em cirurgia pediátrica, doutor em saúde pública e, atualmente, especialista de projetos no Hospital Sírio-Libanês.