O Brasil conta hoje com 536 healthtechs ativas, de acordo com um levantamento da Liga Ventures e da Unimed Fesp. A maioria delas desenvolve soluções de gestão de processos (7,28%); planos e financiamento (7,28%); e bem-estar físico e mental (6,53%). Outras soluções incluem buscadores e agendamentos (6,53%); exames e diagnósticos (5,41%); inteligência de dados (4,66%); capacitação, informação e educação (4,29); prontuário, prescrição e triagem (3,73%); entre outras.
São empresas que têm levado inovação e tecnologia para a área da saúde de maneira mais acelerada, por isso, já são parte fundamental do ecossistema. No entanto, inovar em um setor em constante evolução exige líderes preparados e com algumas competências essenciais.
Um ponto a se destacar, nessa trajetória de evolução das healttechs, segundo Bruno Borghi, presidente da Associação Brasileira de Startups de Saúde (ABSS), é a mudança no perfil dos líderes à frente dessas empresas.
“Em 2017, quando passei a acompanhar mais de perto esse setor, observávamos que quem investia em startups de saúde eram pessoas que não necessariamente eram da área, mas que queriam desenvolver soluções. Hoje, temos um número crescente de médicos empreendedores, líderes que querem criar algo que atenda a uma deficiência que encontram no seu dia a dia. Com a expertise de anos na área, conseguem entregar soluções que apoiem melhorias no setor”, explica.
Para desenvolver soluções que agreguem valor tanto ao paciente quanto às instituições de saúde, as lideranças precisam ter algumas características e competências consideradas básicas por alguns especialistas.
Julia Cestari, líder do Comitê de Saúde Digital do Movimento Inovação Digital (MID), cita algumas que os líderes têm em comum, como conhecimento sobre as dores do sistema de saúde, possibilidade de traduzir experiências de outros setores e adaptabilidade da solução durante implementação.
“Mais do que propor uma solução para uma realidade específica, é preciso entender como ela se encaixa no ecossistema como um todo. Não se trata apenas de resolver uma dor pontual; é crucial entender o impacto sistêmico da inovação e como ela agrega valor ao conjunto de stakeholders. Entender a realidade tanto do ponto de vista de sustentabilidade financeira quanto da fragmentação do cuidado do paciente, assim como a desigualdade regional do acesso à saúde, é essencial.
Julia destaca também a importância de saber incorporar e adaptar tecnologias e modelos de negócios de outros setores, como varejo, fintechs e logística. “A área da saúde geralmente demora a trazer inovação. Nesse cenário, o líder que abre a mente e está ‘antenado’ com o mercado ganha ao incorporar o que deu certo em outros setores nos quais a inovação é incorporada com mais agilidade.”
Em um setor extremamente regulado e dinâmico também é exigido que os líderes estejam preparados para ajustar rapidamente suas estratégias de acordo com os feedbacks do mercado, mudanças regulatórias ou evoluções tecnológicas. “Fatores culturais, de comportamento do paciente e médico, são importantes também para se levar em consideração”, diz ela.
Além das competências e habilidades pontuadas por Julia, outras, na opinião de Thiago Liguori, fundador da Stealth AI Startup, merecem destaque, como o conhecimento sobre o desenvolvimento de produtos digitais; sobre as normas e regulamentações de órgãos como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e Ministério da Saúde; sobre gestão de pessoas; construção e manipulação de modelos financeiros e processo de adoecimento e cura.
“Ter uma visão técnica aprofundada da interação entre prestadores e pagadores é mais importante do que muitos acreditam, especialmente em áreas emergentes, como inteligência artificial, gestão de dados e dispositivos médico-hospitalares. Desenvolver soluções inovadoras que realmente façam a diferença na vida dos pacientes e nas operações das instituições de saúde não é algo trivial. Exige tanto habilidades técnicas (mais tradicionais) como interpessoais (soft skills) para conseguir navegar pelo ecossistema. Além disso, a adaptabilidade e o aprendizado contínuo são cruciais”, destaca o especialista.
Liguori cita também outras habilidades, como a de liderar equipes multidisciplinares de forma colaborativa. Isso envolve influenciar positivamente as pessoas, fomentar um ambiente de trabalho eficaz em equipe e tomar decisões baseadas em dados. “Habilidades de comunicação são igualmente indispensáveis para transmitir ideias de forma clara e construir relacionamentos sólidos com todos os stakeholders envolvidos.”
Por fim, diz ele, a empatia e a humanização não podem ser subestimadas na saúde, pois são elas que garantem que as soluções desenvolvidas realmente atendam às necessidades dos pacientes. “O setor de saúde está em constante evolução, e os líderes precisam estar dispostos e aptos a aprender novas tecnologias e metodologias de forma ágil.”
Borghi complementa a opinião de Julia e Thiago, destacando que, para ele, evoluir e saber aceitar as mudanças de rotas são primordiais para quem quer liderar na área da saúde. “Tem que saber ouvir o mercado e estar preparado para realizar as mudanças exigidas na solução desenvolvida para que ela cumpra seu papel.”
O fundador da Sami Saúde, Vitor Asseituno, segue a linha de pensamento de Borghi e diz que os líderes do setor de saúde precisam saber balancear as escolhas entre as práticas "a manter" e as práticas "a desafiar". “Para fazer isso com sucesso é necessário saber medir os resultados de cada processo e cada intervenção, e ao mesmo tempo estar disposto a testar coisas novas frequentemente, garantindo os cuidados com a segurança do paciente e o impacto na melhoria da saúde.”
A expertise em inteligência artificial (IA), interoperabilidade e gestão de dados também devem fazer parte do pacote de competências básicas que um líder de uma heatlhtech deve desenvolver e dominar. No entanto, na opinião de Julia, o ponto principal aqui é a capacidade de compreender como uma solução específica se alinha e agrega valor a esses pilares. “Não basta simplesmente adotar essas tecnologias porque são tendências; o verdadeiro diferencial está em saber como integrá-las de maneira que resolvam problemas concretos.”
Para ela, nesse contexto, importa mais como a IA, interoperabilidade e a gestão de dados na solução desenvolvida podem melhorar a adesão do paciente ao seu tratamento e sua jornada; aumentar a eficiência e reduzir custos em um setor que é financeiramente restritivo.
“Conhecimentos em machine learning, mesmo que básicos, já são um grande diferencial para gestores e empreendedores. Já a inteligência artificial possibilita o desenvolvimento de ferramentas que podem melhorar significativamente o diagnóstico, o tratamento e a experiência geral do paciente. E entender o conceito de interoperabilidade na saúde, não apenas na teoria, mas as suas implicações práticas, colocam um gestor em um grupo seleto em relação à gestão da informação na área da saúde”, analisa Liguori.
A gestão de dados, por sua vez, é crucial para lidar com o grande volume de informações geradas no setor, desde resultados de exames até a documentação clínica em prontuário eletrônico.
“Hoje, menos de 10% das instituições estão usando dados para gerar insights clínicos. Saber processar, normalizar e interpretar dados em saúde são habilidades relevantes para um líder de healthtech”, comenta Liguori.
Segundo o levantamento da Liga Ventures, das 536 healthtechs ativas no Brasil, 89 aplicam inteligência artificial em suas soluções com o intuito de analisar e processar imagens, personalizar tratamentos, realizar pesquisa e desenvolvimento de medicamentos e terapias, monitorar pacientes, dar previsão e rastreabilidade de surtos e doenças e hiper personalização da jornada do paciente. “A IA sempre foi primordial e deve estar embarcada nas soluções, pois ela auxilia o usuário a obter respostas mais rápidas, seguras e com possibilidade maior de acerto”, opina Borghi.
O setor de saúde é conhecido por ser extremamente regulado, e o desenvolvimento de soluções nessa área também exige conhecimento e capacitação. Segundo Julia, inovar inclui assumir alguns riscos, mas lidar com esse segmento exige um olhar atento a três eixos principais.
O primeiro deles, na sua avaliação, é o entendimento de experiências internacionais. “O mundo é um bom parâmetro sobre como aquela determinada tecnologia está sendo regulamentada. Vemos isso atualmente em relação à inteligência artificial, por exemplo, em que as discussões europeias e americanas também impactam o contexto brasileiro. Agências reguladoras, como a Anvisa, também levam em consideração diretrizes internacionais para avanços regulatórios. Além disso, benchmarkings podem dar mais clareza sobre possibilidades de eixo de crescimento de negócio.”
Também importante, segundo ela, é compreender o contexto regulatório político local, tendo uma visão sobre como a tecnologia é percebida pelos atores do ecossistema de saúde e, principalmente, qual a preocupação dos reguladores sobre seu impacto.
Por fim, Julia cita a versatilidade na colaboração entre atores setoriais diante de um ambiente de construção de regulações. “Saber congregar atores da mesma cadeia, mesmo que sejam concorrentes comercialmente, é uma habilidade essencial. A importância das entidades setoriais está na possibilidade de criação de um fórum que consiga possibilitar essa colaboração e visão conjunta de setor, propondo soluções de regulação e políticas públicas que podem determinar a adesão dessas tecnologias.”
Liguori acrescenta, a essa lista de competências, outras que incluem, por exemplo, ter um pensamento estratégico e inovador para encontrar soluções criativas que atendam às necessidades do mercado, mesmo quando a regulamentação ainda não está completamente definida, como é o caso da inteligência artificial.
A gestão de riscos é outra competência crucial. “É importante identificar e mitigar os riscos associados ao desenvolvimento de produtos não regulamentados, garantindo que a empresa esteja preparada para responder a qualquer desafio regulatório que possa surgir. Ser flexível e adaptável permite ajustar produtos e estratégias conforme necessário, especialmente quando novas regulamentações entram em vigor.”
Nem sempre a jornada do líder de uma healthtech é tranquila e linear. Obstáculos existem. Para Asseituno, ter claro o propósito da empresa é fundamental para se manter na jornada e vencer os obstáculos. “Se alguém vê a saúde como uma oportunidade de rápida disrupção e ganhos de curto prazo, escolheu a indústria errada. Por outro lado, é um setor muito resiliente, do qual a sociedade inteira depende e tem altas expectativas, na maior parte das vezes não atendidas. É necessário ter uma visão de longo prazo, mas com o senso de urgência que o setor precisa.”
Para Borghi, mesmo diante dos desafios que se apresentam diariamente, é preciso pontuar que os diretores de inovação de instituições de saúde buscam soluções disruptivas. “No passado, eram feitos altos investimentos, e muito pouco era entregue. Hoje, as soluções desejadas são aquelas que ofereçam um melhor atendimento, e várias são as possibilidades existentes.”
Determinação e resiliência são as duas palavras que movem Liguori quando o assunto é superar desafios. Ele conta que uma das formas que encontrou para lidar com os obstáculos é construindo redes de apoio, conectando-se com outros profissionais e líderes do setor para compartilhar experiências e aprender com as vivências de cada um.
“As parcerias estratégicas também são valiosas. Colaborar com instituições de saúde, universidades e outras empresas da área pode ampliar nossos recursos e expertise. Além disso, procuro sempre me manter disposto a ajustar estratégias e aprender com os feedbacks e as falhas ao longo do caminho. Manter uma comunicação aberta e transparente com a equipe e os stakeholders ajuda a alinhar expectativas e fortalecer o compromisso de todos com os objetivos da empresa”, afirma.