O estado do Rio Grande do Sul enfrenta uma grave escassez de médicos, uma situação agravada pelas enchentes devastadoras que ocorreram entre o final de abril e o início de maio, consideradas uma das maiores catástrofes climáticas da região. Atualmente, o número de médicos no estado está muito aquém do recomendado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo dados da Associação dos Mantenedores Independentes Educadores do Ensino Superior (AMIES). A situação pode se deteriorar ainda mais, pois o Ministério da Educação (MEC) pode rejeitar 13 solicitações para a abertura de novos cursos de medicina e nove para a expansão das vagas em cursos já existentes no estado, devido a mudanças recentes nos critérios de avaliação.
De acordo com a OCDE, a proporção ideal é de 3,73 médicos para cada mil habitantes, o que garantiria uma distribuição mais equitativa em todo o país. No entanto, no Rio Grande do Sul, apenas 6,67% das regiões de saúde (conjunto de municípios com características culturais, econômicas, sociais e de infraestrutura semelhantes) alcançam esse padrão, deixando 93,33% abaixo do recomendado.
Apesar dessa disparidade, o MEC está atualmente avaliando os pedidos de novos cursos e aumento de vagas, incluindo solicitações da Faculdade de Ciências da Saúde Moinhos de Vento e da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI). No momento, há 22 processos em tramitação no MEC, mas a expectativa é que todos sejam rejeitados devido à mudança nos critérios estabelecidos pelo artigo 2º da Portaria nº 531/2023.
Esmeraldo Malheiros, advogado e consultor jurídico da AMIES, observa: “A lei estipula que a relevância e necessidade social para a criação de novos cursos de medicina devem considerar a região de saúde. No entanto, o MEC e a SGTES têm sistematicamente desconsiderado esse critério legal e restringido a criação de novos cursos de medicina.”
Segundo a Portaria nº 531/2023, o MEC tem negado pedidos ao considerar apenas o número de médicos por município, em vez de levar em conta a região de saúde, o que vai contra a Lei dos Mais Médicos. Os artigos 3º e 7º dessa lei, que orienta a criação de cursos de medicina no Brasil, definem a região de saúde como a unidade geográfica para análise da autorização de novos cursos.
Alcindo Ferla, pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, destaca: “Os municípios brasileiros variam significativamente em termos de população e recursos. Há uma grande disparidade entre municípios com poucos habitantes e os com grandes concentrações populacionais, como São Paulo. Além disso, há diferenças significativas no investimento público e no perfil demográfico, com grandes municípios atraindo mais jovens adultos e os menores predominando com idosos e crianças.”
Por exemplo, o curso de medicina oferecido pelo Centro Universitário FACENS (UNIFACENS) em Sorocaba foi negado com a justificativa de falta de relevância social, uma vez que o município tem 5,13 médicos por mil habitantes, acima do recomendado pela OCDE. No entanto, a região de saúde que inclui Sorocaba tem apenas 2,87 médicos por mil habitantes.
Essas discrepâncias entre municípios motivaram a criação das regiões de saúde, que visam oferecer um atendimento mais resolutivo e de qualidade, permitindo que a população se desloque mais facilmente para obter cuidados médicos. “Em 2011, estabeleceu-se que cada estado e o Distrito Federal deveriam desenvolver estratégias para regionalizar a saúde, ajustando a oferta de serviços às necessidades específicas de cada área”, explica Alcindo.
Rafael Henn, reitor da Universidade de Santa Cruz do Sul e presidente do Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung), expressou preocupação com as recentes decisões do MEC. “Estamos surpresos com as negativas do MEC para a abertura de novos cursos e vagas em medicina. Considerar a relação de 3,73 médicos por mil habitantes nos municípios não faz sentido; o correto é analisar as regiões de saúde, que refletem uma realidade mais precisa e abrangente”, afirma Henn.
O Rio Grande do Sul, com mais de 10 milhões de habitantes e mais de 54 mil médicos especialistas, apresenta uma disparidade na distribuição de médicos, com 20% das regiões tendo até 1,7 médico por mil habitantes. Cidades severamente afetadas pelas enchentes, como Uruguaiana e Estrela, estão entre as que têm números abaixo do recomendado.
“Durante as enchentes, alunos e professores de diversas especialidades, como pediatras, fisioterapeutas e psicólogos, se mobilizaram para prestar atendimento imediato às vítimas. Além disso, universidades comunitárias como a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) abrigaram mais de 1.800 pessoas sem custo. Precisamos urgentemente de mais médicos para continuar ajudando a população e reconstruir o estado”, conclui Rafael.
Claudio Klein, Secretário de Saúde do município de Lajeado, enfatiza que a prioridade deve ser a capacitação dos profissionais e a criação de planos de carreira sólidos. “O debate sobre a interiorização dos médicos é antigo. Devemos oferecer recursos para mantê-los no interior e evitar que migrem para centros maiores. É essencial ter médicos em todas as áreas, mas isso requer a criação de oportunidades também nesses locais. Uma carreira estatal, similar ao judiciário, poderia ser uma solução”, sugere Klein.
As especialidades médicas com menor número de profissionais no Rio Grande do Sul incluem alergologia e imunologia (42 médicos), cancerologia pediátrica (38 médicos), genética (33 médicos) e saúde pública (18 médicos).