A biotecnologia global está prestes a passar por uma transformação significativa com a recente aprovação do Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre Patentes, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais Associados. Após um quarto de século de negociações, representantes de diversos países se reuniram em uma conferência diplomática entre os dias 13 e 24 de maio de 2024, resultando na aprovação deste tratado histórico. A principal mudança trazida por este tratado é a obrigatoriedade de revelação da origem dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais associados em pedidos de patente.
“A entrada em vigor desse tratado representa um marco no campo da propriedade intelectual, especialmente para países megadiversos como o Brasil, e para as comunidades tradicionais que há muito tempo lutam pelo reconhecimento e pela proteção de seus conhecimentos ancestrais, tendo prevalecido o posicionamento do governo brasileiro durante as negociações”, afirma Viviane Kunisawa, sócia da Daniel Advogados.
O artigo primeiro do tratado delineia seus objetivos, focando na eficácia, transparência e qualidade do sistema de patentes em relação aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.
Embora o tratado já conte com um número significativo de signatários desde sua aprovação, ele entrará em vigor três meses após 15 países-membros depositarem seus instrumentos de ratificação ou adesão junto ao secretariado da OMPI. Quando uma invenção objeto do pedido de patente for baseada em recursos genéticos ou conhecimentos tradicionais associados, os depositantes serão obrigados a divulgar o país de origem ou as comunidades tradicionais detentoras.
“A OMPI definiu ‘baseada em’ como a necessidade de os recursos genéticos e/ou conhecimentos tradicionais serem essenciais para a invenção reivindicada e que suas propriedades específicas dependam dos recursos genéticos e/ou conhecimentos tradicionais associados. Caso o depositante não tenha conhecimento das informações necessárias no momento do pedido da patente, deverá fazer uma declaração nesse sentido”, explica Viviane.
O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) terá um papel crucial na implementação do tratado, estabelecendo os meios necessários para que os depositantes possam cumprir com as novas obrigações, provavelmente por meio de novas resoluções e da criação de um banco de dados com informações sobre recursos genéticos e conhecimentos tradicionais. Este banco de dados deverá ser construído em conjunto com os povos indígenas e comunidades tradicionais.
“As sanções por descumprimento do tratado foram um dos pontos mais controversos durante as negociações. O tratado estipula que cada país estabelecerá medidas jurídicas e administrativas adequadas para lidar com eventuais infrações, sendo que a nulidade da patente concedida só será possível em caso de comprovação de má-fé do depositante”, ressalta a advogada.
O tratado não terá efeitos retroativos, não afetando patentes já depositadas, mas ressalta que leis nacionais existentes, como a legislação brasileira de acesso ao patrimônio genético e repartição de benefícios, permanecem em vigor. A legislação brasileira, por exemplo, obriga o depositante de uma patente cuja invenção tenha sido desenvolvida a partir do uso de recursos genéticos brasileiros a realizar um cadastro eletrônico prévio ao depósito da patente. É importante ressaltar que as normas nacionais não preveem a nulidade de uma patente já concedida pelo descumprimento desta obrigação.
Há uma conexão clara entre o novo tratado e outros acordos internacionais, especialmente, o Protocolo de Nagoia e a Convenção sobre Diversidade Biológica.
Com a implementação deste tratado, espera-se uma maior transparência e rastreabilidade que leve a um aumento significativo na repartição de benefícios tanto para os países provedores de recursos genéticos quanto para os detentores de conhecimentos tradicionais associados.
A entrada em vigor do tratado é apenas o primeiro passo em um longo caminho que inclui a ratificação pelos países-membros e a criação de mecanismos internos de divulgação da origem dos recursos. É crucial que essa construção evite a burocracia excessiva que poderia atrasar a análise e concessão de patentes, prejudicando o equilíbrio entre os direitos dos povos originários, o desenvolvimento da biotecnologia e a proteção das patentes.
Em conclusão, o novo tratado da OMPI sobre Patentes, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais Associados tem o potencial de transformar a biotecnologia global, promovendo a distribuição de benefícios e fortalecendo os direitos dos povos originários e das comunidades tradicionais.