Escassez de mão de obra na saúde
03/06/2024

Os modelos atuais de prestação de serviços na área da saúde baseiam-se em longas jornadas que nem sempre garantem uma remuneração adequada.  Para compreender melhor os impulsionadores da escassez de mão de obra no setor, a EY realizou um estudo em 11 países, incluindo o Brasil, que indica os três principais fatores que levam os profissionais a considerar abandonar a profissão: falta de autonomia ou controle (42%), sobrecarga (38%), dano moral e preocupações com a segurança do paciente (27%).

De acordo com Leandro Berbert, sócio-líder de Health Sciences & Wellness da consultoria, o EY Global Voices in Health Care Study mostra que os médicos pedem por modelos que coloquem os pacientes em primeiro lugar, sem sacrificar a qualidade de vida. 
 

Em entrevista à revista Medicina S/A, o executivo explica por que a digitalização e os cuidados híbridos são ações prioritárias para otimizar os diagnósticos, reduzir o desgaste dos profissionais e melhorar a qualidade de vida aos pacientes.

Medicina S/A: O estudo EY Global Voices in Health Care buscou compreender os impulsionadores da escassez de mão de obra na área da saúde. Hoje, qual o tamanho desse problema e quais os principais impactos para os sistemas de saúde?

Leandro Berbert: Apesar do final da pandemia, o ecossistema de saúde ainda sente a pressão sobre a lucratividade e sustentabilidade do setor. Tal pressão por resultados tem impactado também na mão de obra do segmento.

Dessa forma, a escassez de mão de obra tem como principais fatores condições de trabalho degradantes que são refletidas em extensas horas de trabalho, acúmulo de funções e um excesso de trabalho administrativo, ao invés do foco do trabalho ser o cuidado e a atenção aos pacientes.

Ademais, a baixa remuneração e a falta de plano de carreira ganham destaque. Com isso, os profissionais tendem a buscar novas oportunidades. Adicionalmente, tem-se a descrença no modelo de cuidado, evidenciado pela pressão por custos, redução de inovação e flexibilidade por parte do corpo clínico, muitas vezes colocando o valor para o paciente em segundo plano.

Vale sinalizar também que, quando analisamos a realidade local, o estudo traz alguns insights que devem ser levados em conta também para entender esses impactos e suas consequências. O top cinco de principais pontos trazidos pelos profissionais de saúde sobre a realidade do setor no país são: resistência na adoção de tecnologia, salários não competitivos, falta de investimento de capital em cuidados de saúde, desafios na retenção da força de trabalho e aumento de casos de burnout e depressão entre o corpo clínico, incluindo médico.

Uma pesquisa de mercado de 2021, por exemplo, apontava que 83% dos profissionais de saúde relataram insatisfação com as medidas no local de trabalho para proteger sua saúde mental e 37% tiveram resultado positivo para indicadores de alta exaustão emocional.

Medicina S/A: A pesquisa identificou os três principais fatores que levam os médicos a abandonar a profissão. Por que eles são decisivos para os profissionais?

Leandro Berbert: O estudo identificou que globalmente os principais fatores que levam os médicos a abandonar a profissão são a falta de autonomia, sobrecarga e preocupações com a segurança do paciente. Isso é um resultado que não acontece apenas no Brasil. Dessa forma, acende-se uma luz de alerta sobre como o setor de saúde como um todo trata os profissionais, independentemente do país de atuação.

De maneira geral e em essência, o médico busca autonomia para apresentar opções ao paciente, decidir juntos a melhor conduta terapêutica e testar novos tratamentos. Em um cenário de contenção de custos, principalmente tendo como contexto a pandemia que afetou economicamente o setor de saúde de forma duradoura, essa autonomia acaba sendo reduzida e o foco fica somente na “alternativa mais econômica” para tratar um paciente.

Quando o paciente volta com a mesma queixa, é com o médico que ele fica insatisfeito. Além disso, com o cenário de filas para atendimento eletivo e cada vez menos profissionais de saúde em campo, as equipes clínicas são cada vez mais pressionadas por eficiência: atender mais pacientes em menos tempo, girar os leitos mais rápido, hospitalizar menos etc. O sistema vai entrando num ciclo vicioso.

Algumas dessas decisões visando eficiência são baseadas em evidências, mas o trabalho de conscientização e gestão de mudança acaba por não ser feito. Ademais, os dados que apoiam essa tomada de decisão ainda são pouco utilizados na ponta. Hoje, os médicos gastam cada vez mais tempo olhando para a tela do computador e adicionando dados dos pacientes, dos tratamentos e dos resultados. Todavia, quando vão diagnosticar e prescrever, esses insights não aparecem como ajuda para fazer seu trabalho melhor. Isso acaba sendo cansativo. Um dos melhores inputs que tivemos nas entrevistas do Brasil foi de que temos bilhões de pontos de dados sendo coletados e gerados o tempo todo, tanto no SUS quanto na saúde suplementar, mas nada disso está sendo usado para melhorar a experiência do paciente, entregar desfechos melhores, diagnosticar mais cedo e melhor prevenir doenças.

Medicina S/A: A remuneração, baseada em fee for service, é um problema? Até que ponto a Saúde Baseada em Valor (VBHC), com a prestação de serviços centrada no paciente, pode ser um caminho?

Leandro Berbert: O pagamento por serviço (fee for service) e a falta de visão do todo é, de fato, um problema. A forma como temos implementado a saúde baseada em valor, principalmente na saúde suplementar, não observa os princípios mínimos da teoria. Muito tem sido feito para melhorar a experiência do paciente, mas uma experiência melhor que não entrega um resultado de saúde melhor, não é baseada em valor.

Definir uma conduta terapêutica sem discutir alternativas com o paciente e deixá-lo decidir também não é saúde baseada em valor. Com isso, a saúde suplementar no Brasil ainda atua de forma muito fragmentada: de um lado temos os pagadores tomando decisões muitas vezes unilaterais, visando a redução de custos e a sustentabilidade dos seus negócios, enquanto que, do outro, temos os prestadores de cuidado estrangulados pela pressão financeira, buscando crescimento e recuperação de margens.

Essa visão fragmentada resulta em um nível de desperdício elevado, com exames e hospitalizações desnecessárias, um volume gigantesco de procedimentos e consultas eletivas sem necessidade.

O sistema precisa ser transformado a partir de uma perspectiva integrada que olhe para o cuidado da saúde e não somente da doença, que olhe o custo além da intervenção pontual. Hoje, quando uma operadora de saúde vai autorizar uma cirurgia, pouco se leva em consideração se a técnica e os materiais são os que vão levar a um melhor desfecho de saúde para aquele paciente.

Portanto, a saúde baseada em valor só é possível com o uso holístico de dados: custo total do cuidado, desfecho clínico medido pelo sistema e reportado pelo paciente, e o fator da experiência de cuidado. Sem dados, a conversa de valor é muito rasa.

Medicina S/A: A pesquisa identificou uma desconexão entre as perspectivas do médico e do sistema de saúde. Na prática, o que isso significa?

Leandro Berbert: O estudo mostrou que, enquanto os médicos enfrentavam pacientes doentes, desafios financeiros e custos laborais exorbitantes, os executivos dos sistemas de saúde tendiam a concentrar-se nos salários em resposta à escassez de profissionais (39%), provendo iniciativas de educação (33%) e benefícios de bem-estar (22%).

Na prática, isso significa que os players de saúde estão encarando novas demandas de profissionais de diferentes gerações e, mais do que isso, precisam se adaptar às especificidades dos diferentes grupos, de forma a trabalhar a retenção e a atratividade de maneira mais personalizada.

Ou seja, é preciso conhecer sua força de trabalho, entender como podem melhorar a satisfação dos médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde, visando a entrega do cuidado ao paciente de forma mais eficiente. Isso inclui a melhor distribuição das demandas dentre as equipes multidisciplinares e, claro, como já mencionado, a adoção de tecnologias que suportem esse processo.

Outro ponto mostrado pela pesquisa é que parte dos médicos entrevistados afirmam que apreciam o maior foco na atenção plena e na saúde mental. Isso indica que essa é uma preocupação maior e mais presente nas perspectivas dos profissionais de saúde do que nas perspectivas do sistema em si.
 

Medicina S/A: Os casos de danos aos pacientes advindos da prestação de serviços, bem como a judicialização da saúde, são crescentes. Como reverter esse cenário?

Leandro Berbert: De fato, a pesquisa mostra a preocupação dos profissionais de saúde com potenciais processos relacionados à prática médica. Além disso, temas voltados a acesso a medicamentos e tratamentos são alvos crescentes de judicialização.

Acredito que, para discutirmos a reversão desse cenário, precisamos de um ambiente regulatório mais estável, com diretrizes e jurisprudências claras, algo que não devemos alcançar rapidamente. Além disso, as organizações precisam investir mais em treinamentos e capacitações, com foco na qualidade e segurança do paciente, e que possam estar engajadas na prevenção dos riscos de eventos adversos e outros danos, procurando garantir que os médicos estejam mais seguros.

Por fim, a redistribuição das escalas e a discussão das equipes também pode ser uma estratégia para diminuir a carga de trabalho que afeta não somente a saúde mental do profissional, mas sua capacidade de executar suas diferentes funções. A pressão de atendimento rápido eficiente e em grande volume pode estar conectada com diferentes cenários, nos quais médicos podem estar sujeitos a erros, e tudo isso pode impactar nas suas decisões.

Medicina S/A: Uma saúde mais digital pode ajudar? Quais os custos e impactos de não adotar estratégias digitais?

Leandro Berbert: A transformação digital no setor de saúde é mais um caminho sem volta e as organizações devem usufruir da tecnologia para otimizar os diagnósticos, reduzir o desgaste dos profissionais e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.

Uma saúde mais digital representa uma importante estratégia para as empresas do setor, tanto na parte administrativa quanto na parte clínica do cuidado. A integração de ferramentas utilizadas por profissionais de saúde e por pacientes, durante a jornada do acesso e cuidado, torna mais eficientes e agradáveis as respectivas experiências.

Em contrapartida, a não utilização de ferramentas digitais deverá resultar em menor produtividade, maior insatisfação e maior turnover do corpo clínico.

Hoje, o digital é visto como um centro de custos, não como um centro de valor de fato. É necessário mudar o mindset para que o setor entenda esse modelo como uma possibilidade de mais produtividade e, ao mesmo tempo, maior satisfação dos profissionais.

Medicina S/A: Em sua opinião, por que há tanta resistência em compartilhar dados relacionados à prática clínica no setor?

Leandro Berbert: A falta de governança e a ausência de visibilidade objetiva dos ganhos individuais dos players com o compartilhamento de dados constituem as principais barreiras para a evolução dessa dinâmica.

Outro aspecto bastante crítico diz respeito à complexidade e à subjetividade das análises de performance clínica. Como exemplo, hospitais potencialmente classificados como mais eficientes em desfechos clínicos acabam atraindo casos mais complexos, que tendem a impactar esses indicadores negativamente.

De fato, o alinhamento de interesses desponta como um componente mais importante do que o custo de compartilhamento, principalmente quando falamos da saúde suplementar.

Outro ponto é que ainda não há um completo entendimento de como a tecnologia e os dados podem otimizar e facilitar toda a jornada de saúde, tanto para pacientes quanto para profissionais. É preciso uma mudança no comportamento dos gestores que formam esse setor.

Medicina S/A: O Brasil difere dessa realidade global? Quais foram os principais pontos destacados pelos profissionais de saúde?

Leandro Berbert: O Brasil não difere da realidade global. Aqui também pudemos perceber a preocupação com a maior capacitação dos recém-graduados, bem como a necessidade de suporte para os profissionais das equipes multiprofissionais: enfermeiros e técnicos precisam muitas vezes de mais de um emprego, o que também afeta questões relacionadas à saúde mental.

A necessidade de implementação de novas tecnologias também é algo urgente em outras regiões, bem como a identificação de novas formas de estabelecer um relacionamento com o médico que esteja alinhado às necessidades dos profissionais.

Medicina S/A: Avaliando esse período pós-pandemia, os sistemas de saúde estão sabendo lidar com a questão da saúde mental dos profissionais? O que a pesquisa mostra?

Leandro Berbert: Após a pandemia de covid-19, a pauta de saúde mental dos profissionais entrou na agenda dos empregadores em geral. Hoje, mais do que nunca, esse tema é debatido por diferentes setores das companhias: recursos humanos, comunicação, gestores e lideranças. Há uma conscientização muito maior de que a saúde mental dos colaboradores está diretamente ligada à produtividade (ou à queda de produtividade) no ambiente de trabalho.

Todavia, ainda questionamos a maturidade das organizações em progredir com o tema. O momento de pressão por resultados complica ainda mais a equação que deveria equilibrar sustentabilidade financeira e bem-estar dos profissionais do setor.

A pesquisa mostra que os ambientes de trabalho, mesmo com os avanços que já ocorreram, ainda são considerados caóticos, com uma grande demanda de trabalho nos finais de semana e feriados, pouca padronização dos processos, e ainda a necessidade de que os médicos lidem com situações complexas e emocionais dos seus pacientes.

Adicionalmente, a busca por uma remuneração melhor também gera uma pressão que pode estar relacionada a questões de saúde mental, porque impacta a qualidade de vida dos profissionais. Dessa forma, ainda se identifica uma parcela importante de profissionais que apresentam sintomas de exaustão, e esses profissionais ainda não sentem que as medidas criadas para endereçar o equilíbrio profissional e de saúde têm sido eficazes, demonstrando que ainda se tem um caminho importante para as companhias conquistarem.

Medicina S/A: Por que um modelo híbrido na saúde pode ser um caminho? De que forma isso pode funcionar de maneira eficiente no setor?

Leandro Berbert: Um modelo híbrido (considerando uma maior digitalização do atendimento) pode ser um caminho, pois permite que condições leves sejam tratadas mais rapidamente, sem expor os pacientes a ambientes de risco de transmissão de outras doenças, além de empoderar o paciente sobre sua própria saúde.

Além disso, pode diminuir a necessidade de estruturas físicas para determinados atendimentos e facilitar também a rotatividade e as escalas dos médicos. Por fim, cada vez mais, as organizações de saúde devem avançar em direção a modelos de cuidados híbridos habilitados digitalmente para enfrentar os desafios contínuos da força de trabalho. Inclusive, os modelos que integram o atendimento remoto e hospitalar podem ajudar a aliviar a demanda de atendimento, expandir o atendimento preventivo e melhorar a experiência do paciente e do médico.

Os dados também ajudam a identificar o momento, o local e o modo de atendimento apropriados para cada paciente. Opções de triagem virtual mais eficazes e cuidados primários virtuais podem ajudar a reduzir a carga, enquanto dispositivos e aplicativos inteligentes de monitoramento remoto de pacientes permitem intervenções baseadas em exceções e ajudam a criar pontos de contato mais consistentes com os pacientes.





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