Apesar dela não ser mais a presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), ela carrega uma bagagem de mais de dez anos dentro da instituição, que completou quinze anos este ano. Estou falando da atual diretora de desenvolvimento setorial da Agência, Martha Oliveira, que cedeu a presidência interina ao José Carlos Abrahão no dia 16 de junho deste ano. Antes dessa transição de cargo, a jornalista Marica Carolina Buriti conversou com Martha sobre o papel da ANS e sua interferência nos rumos da Saúde brasileira, para a revista Saúde Business de julho.
O tom da entrevista leva a crer que já passou a fase de amadurecer a regulamentação da Saúde no País, e que agora é hora de trabalhar para resolver questões urgentes como o financiamento da saúde, a falta de integração entre o público e o privado e ações planejadas para atender uma população cada vez mais envelhecida.
Acompanhe as respostas de Martha, que também é doutoranda na área de envelhecimento humano na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), assunto que considera uma das principais propostas da agência.
Saúde Business: com 15 anos da criação da agência, o número de operadoras médico-hospitalares diminuiu de 1380 para 873, mas ainda é um número expressivo, pois oferece atendimento a mais 50 milhões de pessoas. Na sua avaliação, o segmento continuará o movi¬mento de consolidação? Como o órgão atua para garantir a concorrência das empresas?
Martha Oliveira: Na verdade, o movimento mais importante no setor é o de qualificação. Qual seria o número certo de operadoras? Não sabemos. Depois desses 15 anos, temos vários estudos que mostram o comportamento do setor e o que é necessário para se ter viabilidade. Agora, mais do que tudo, é importante ter qualidade. Se o movimento necessário para isso será o da diminuição de operadoras ou não, se será o de concentração, ainda não temos essa resposta. Queremos que permaneçam no mercado as operadoras que sejam sustentáveis, viáveis e que tenham qualidade. Esse é o nosso mote e é dessa maneira que estamos trabalhando.
Mesmo com esse mote para a qualidade, a agência tem alguma preocupação em garantir a concorrência?
A concorrência, a sustentabilidade e o desenvolvimento são motes importantes da agência e eles têm tudo a ver com a qualidade. O Brasil é muito grande, as regiões são muito diferentes entre si, assim a concorrência é importante e é considerada nessa discussão.
A perspectiva de envelhecimento para os brasileiros é uma realidade e esse processo ocorrerá rapidamente. Uma das características das pessoas nesta faixa etária é a aposentadoria, o que resulta na perda do plano de saúde, que está atrelado ao emprego. Qual a visão do órgão para esse perfil? Considerando que as operadoras estão deixando de oferecer planos para pessoa física e migrando para planos corporativos e coletivos por adesão.
Envelhecer é uma conquista e queremos continuar essa conquista tanto com anos de vida quanto com qualidade nestes anos de vida. Estudamos várias perspectivas deste tema na agência. Temos a perspectiva assistencial, que considera quais as mudanças que precisamos fazer na prestação de serviço para que o idoso receba atenção diferenciada, pois ainda não conseguimos fazer a reversão dos serviços. Eles ainda são muito focados na doença aguda, então, como fazer esse redesenho da prestação do serviço? Outro desenho importante é o financiamento do setor, o custo dessa atenção, pois ela tem tudo a ver com o modelo e o que temos hoje, o fee for service, agrava esse financiamento equivocado. Também temos que considerar o mutualismo na saúde suplementar, como fazemos para o envelhecimento ter espaço e ser uma oportunidade para o setor dentro deste sistema mutual. Essa é uma dis¬cussão que se faz dentro da agência. Envelhecimento é tema que pretendemos cuidar com mui¬to carinho nos próximos anos. Essa discussão deve ser rápida, pois esse bônus epidemiológico, que é o momento que ainda temos mais pessoas na idade ativa do que idosas, está acabando, essa inversão na curva se dá em 2030. Assim, temos pouco tempo para solucionar essas questões.
Algumas operadoras atendem o público de pessoa física, mas não vendem mais o plano para esse perfil, assim há poucas opções para este beneficiário. A agência atua de alguma forma para garantir a oferta de planos para pessoa física?
Estudamos a formação do setor como um todo, tanto os planos indi-viduais quanto os coletivos. A oferta é dependente da organização da empresa, não existe uma regra que obrigue uma empresa a comercializar determinado tipo de plano. A agência regula tanto os planos individuais como os coletivos, mas a decisão deste nicho de mercado é da própria empresa. Recentemente divulgamos a norma 360, que trabalha para oferecer a melhor informação, tornando [o cidadão] capaz de optar por um plano ou outro, pois cada um tem características muito diferente. Existe um projeto de estudar essa dinâmica de opções de comercialização para saber até que ponto deve ser estimulado ou não certo tipo de plano. Mas ainda é um estudo e estamos monitorando se é preciso ou não fazer alguma coisa.
Desde o começo, um dos objetivos da agência sempre foi a integração com o segmento público. Para a próxima agenda regulatória, que está em consulta pública, o tema aparece como um dos eixos centrais. Por que essa integração não aconteceu nesses 15 anos?
Pensar integração é muito mais do que pensar ressarcimento. É pensar o sistema de saúde com as características do sistema brasileiro. Nos outros países, ou se opta por um dos sistemas ou só existe um. Aqui [no País] existem dois e quando se tem [atendimento] no privado também existe o direito ao público. O Brasil é o único no mundo com essa característica. Assim, como fazer essa integração? Ela já existe na vacinação e vigilância sanitária, mas como pensar a integração dos serviços? Porque se usa o sistema público e, muitas vezes, também o privado. Se faz exames em ambos, mas a informação não circula, duplicamos os cuidados, porém não se sabe como as pessoas estão circulando entre os sistemas. Nunca criamos uma integração dos serviços. Precisamos pensar esse modelo novo e diferenciado de integrar os dois sistemas. Esse é um projeto importante e precisamos começar a construí-lo agora.
E por que isso nunca aconteceu?
Nós estávamos organizando a saúde suplementar. Hoje, de uma outra perspectiva, sob outra ótica, já conseguimos vislumbrar esses pontos de interface e o é preciso fazer para integrar de verdade. É um amadurecimento da regulamentação e do comportamento do setor para conseguirmos avançar.
Um dos pontos que você citou é o ressarcimento. Ele é um dos indícios mais fortes dessa desintegração entre o públi¬co e o privado. Como agência atua para reduzir esse impacto para o sistema público?
O ressarcimento existe para ser mais um mecanismo que force as operadoras a cumprirem seu contrato, já que temos dois sistemas convivendo. Estamos criando mecanismos, entre eles uma nova norma, divulgada recentemente [8 de maio], cobrando procedimentos de alta complexidade. Estamos avançando dentro do tema ressarcimento, tanto na compatibilização de pessoas, que é o reconhecimento de quem usou o outro sistema, o qual chamamos de “batimento das bases”, tanto nas formas de cobrança para garantir o cumprimento dos contratos.
Quais foram os resultados da Câmara Técnica de Remuneração de Hospitais da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)? Desta câmara foi criado algo efetivo para a mudança no modelo de pagamento (fee for service)?
Já temos um diagnóstico e já temos propostas. O que precisa é colocar em prática, pois só com a prática se consegue mudanças. Resolvemos partir para pilotos que podem mudar. O financiamento está muito ‘colado’ ao modelo. Temos que mudar o financiamento para mudar o modelo e o modelo para mudar o financiamento, ou seja, precisamos mudar as duas coisas ao mesmo tempo. Um dos exemplos é o termo de cooperação com o Hospital Albert Einstein e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), [projeto-piloto que envolve hospitais públicos e privados e vai testar estratégias para à melhoria da atenção ao parto, que impacta também o financiamento e a remuneração], pois nele tentamos mudar o modelo junto com o financiamento. Nele vamos medir tudo, ter tudo detalhado e avaliar como foi a aplicação da metodologia para neste primeiro ano de projeto conseguir mudar primeiramente esse procedimento, mas que poderá servir futuramente para todos procedimentos. Com isso, começaremos outros projetos pilotos para o idoso e para atenção primária já juntando mudança de modelo e financiamento. Criamos esse modelo e financiamento durante 50 anos e, agora, precisamos fazer com que eles mudem juntos para termos resultados efetivos.
Podemos considerar o projeto de parto normal um marco para tentativa de mudança de modelo para o setor?
Esperamos que sim.
Considerando sua trajetória na ANS, qual sua principal missão?
Acho que há algumas coisas importantes, a primeira delas é o envelhecimento, pois precisamos redesenhar o modelo para ser sustentável. Depois disso, pensando na sustentabilidade e viabilidade do setor o segundo ponto mais importante é a informação, pois precisamos aprimorar a forma como informamos e como as pessoas recebem a informação. Tem que ser uma informação que faça sentido para a população fazer escolhas empoderadas. Então, se pudermos focar nesse redesenho de modelo e na informação, o resto a gente lida com facilidade.
*Esta reportagem foi publicada na revista Saúde Business (julho-agosto-setembro). Leia a publicação na íntegra.