A contribuição de Descartes para a Gestão do Corpo Clínico
18/06/2015 - por SANDRO SCÁRDUA

Logo na primeira parte do seu famoso “Discurso do Método”, o famoso filósofo francês René Descartes (1596-1650) nos brinda com uma reflexão tão genial quanto atual“O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que têm”. Dito de outra forma, é da natureza humana que suas percepções e convicções pessoais regulem vários, senão todos, os aspectos de nossas  vidas, parcial ou totalmente. Kahneman, em sua famosa obra “Rápido e Devagar: as duas formas de pensar”, que tem sido livro de cabeceira de muitos gestores em saúde, também nos traz uma reflexão aprofundada a respeito da forma como lidamos com as decisões diárias que temos que tomar no ambiente das organizações.

Olhando com atenção, vemos que não é difícil constatar de que todos nós achamos que temos bom senso em quantidades suficientes para não precisarmos escutar opiniões alheias. Nada mais natural.

A confiança das pessoas na sua capacidade de melhor discernimento acerca das situações em geral que se colocam no dia a dia, e das decisões delas decorrentes (gerando a sensação de possuir no geral quantidades suficientes de bom senso), se faz presente em diversas situações. No âmbito das organizações de saúde, nunca demais reforçar suas peculiaridades, encontra um terreno fértil para proliferar, influenciando rumos e definições estratégicas, e levando seus gestores e profissionais que atuam na linha de frente a atitudes que parecem desdenhar da enormidade de dados objetivos disponíveis que, não raro, apontam para caminhos distintos das suas conclusões.

Com relação aos incontáveis processos que permeiam essas organizações, notadamente hospitais, as atividades do Corpo Clínico e as instâncias gerenciais acima do mesmo servem como um exemplo concreto do quão difícil é estabelecer padrões que contemplem, na sua totalidade, a maioria das inter-relações entre esses entes e seus maiores objetos de atuação: os pacientes, o público interno e a comunidade.

De forma muito abrangente, há até pouco tempo eu ainda acreditava que padrões mínimos pré-estabelecidos relacionados à ambiência, insumos, tecnologias e visão organizacional poderiam servir como impulsionadores na produção de processos e linhas de ação básica voltada para construção de plataformas de gestão, que por sua vez influenciariam toda uma salutar cadeia de eventos para todos os envolvidos na assistência. A questão é que não existe uma conjunção de fatores ideal, que forneça de forma minimamente adequada aos gestores clínicos as ferramentas necessárias para o desempenho satisfatório de sua atividade: certo ou errado, cada um busca a sua forma de fazer as coisas.

E chamo de desempenho satisfatório basicamente os desfechos clínicos acima de metas pré-estabelecidas, a geração de uma atmosfera de colaboração e cooperação entre os diversos setores de prestação de serviços assistenciais, o engajamento de seu corpo de comandados no melhor estilo “siga o líder” e, sempre bom não esquecer, melhores resultados operacionais e de receita para a organização.

Pior que isso, e aí sim motivo de pesar e preocupação, é a organização que dispõe dos meios para o alcance desses padrões de qualidade assistencial decorrentes da atuação de seu Corpo Clínico, e não o fazem por não os considerarem importantes. Outras vezes até o fazem, na forma de ações de impacto (geralmente muito alardeadas), mas de resultados duvidosos, tais como aquisição de um sistema de prontuário eletrônico de última geração, contratação de profissionais de reconhecida reputação para posições executivas-chave (porém distantes da realidade daquela organização), ou a aquisição de selos de Acreditação Hospitalar: é o típico caso de quem tem uma Ferrari na garagem (e faz questão de mostrar para todos), mas não consegue achar o botão de partida. Isso sem esquecer aqueles casos em que fatores políticos e extra meritórios influenciam na escolha da(s) pessoa(s) que estará à frente da gestão, retardando, em função da inaptidão do escolhido, a adoção de medidas muitas vezes fundamentais à saúde de qualquer hospital.

Quando apontamos para a necessidade de ajustes em prol de melhor desempenho, não estamos falando de uma coisa qualquer. Alguns estudiosos afirmam que somos o 10° mercado consumidor de serviços de saúde no mundo, isso não é pouca coisa. Não é à toa que tanto se tem feito para que os obstáculos à implantação de Lei 13.097 (que trata da entrada de capital estrangeiro em áreas não permitidas pela Lei Orgânica do SUS) sejam vencidos, na expectativa de uma injeção providencial adicional de recursos num setor mais mal administrado que sem dinheiro. E a recíproca é verdadeira: companhias estrangeiras também têm manifestado interesse em entrar no país para abocanhar seu pedaço de mercado, obviamente por vislumbrar grandes lucros. Além disso, todo o setor gera um contingente enorme de empregos diretos e indiretos, contribuindo sobremaneira para a economia do país.

Condutores da gestão clínica dos hospitais tentam demonstrar bom senso em quantidades muito aquém do que na verdade possuem. Profissionais do Corpo Clínico a eles subordinados conduzem o cotidiano das organizações de saúde ancorados nessa aparência.

Um reflexo disso se percebe na forma como esses temas são discutidos, nas ocasiões em que se reserva um espaço sobre o assunto. Em quase todos, em que diversos representantes de hospitais de renome no país são os protagonistas, os presentes são obrigados a ouvir relatos estéreis de “como eu faço”. Esses encontros, em que a temática e formato são geralmente repetitivos, poderiam, na melhor das hipóteses, fornecer uma oportunidade de troca de experiências de forma colaborativa, cada qual retornando para as suas unidades de origem com novas ideias e percepções acerca de como melhorar o desempenho organizacional. Isso, porém, não ocorre. Quem representa o hospital muitas vezes não é a pessoa responsável pela gestão clínica, e quando o é não compartilha informações que poderiam beneficiar o setor em si. Por vezes estratégias gerenciais são tratadas como segredos de Estado, como se isso fosse a fórmula para a juventude eterna: como não há compartilhamento, o clima é de competição. E, como tal, não se poderiam esperar desses debates um nível maior que o visto.

Talvez não haja mais nada a ser dito a esse respeito. Hospitais criam suas próprias verdades. Os organismos e agências reguladoras que se articulam com os mesmos continuam ressaltando a importância da gestão do Corpo Clínico como condição basilar para continuarem competitivos. São discursos que se complementam no terreno da racionalidade, às vezes até semelhantes nas palavras. Na prática, ninguém sabe muito bem sequer do que se trata, sendo preferível pelo gestor continuar a utilizar as medidas que julga necessárias de acordo com sua intuição, chamando a isso gestão clínica adequada.

E talvez isso seja verdade mesmo. Cada organização tem seu histórico, missão e valores a defender, e a moldar suas atitudes perante ela mesma e perante a comunidade que a cerca. Não é ilegítimo, porém é estranho. Afinal, a busca por inovações que ao final tragam um melhor desempenho, verdadeiro, das organizações em saúde, é tão buscada quanto sem novidades.

Quando analisamos alguns dados e vemos que, segundo Bohmer, da Escola de Harvard, apenas 30% dos hospitais norte-americanos seguem protocolos e diretrizes estabelecidos por eles mesmos, pelas sociedades científicas ou pelos institutos de renome daquele país (apenas para ficar nesse exemplo), percebemos que os enunciados de Descartes permanecem atuais.

Bom senso de verdade, desde que subordinado a uma boa dose de humildade, e senso critico em doses altas, devem andar de mãos dadas para que se chegue a um estado de coisas melhor que o atual. Cada um sabe a sua medida. Pode ser que a partir de então as organizações parem de simplesmente reproduzir o que outras fazem de maneira acrítica, ou parem de assumir atitudes baseadas em modelos que estão na moda, tornando assim as atividades do Corpo Clínico um instrumento poderoso para o alcance de níveis assistenciais verdadeiramente comprometidos com a busca da excelência, e fugindo assim do menos original dos sensos: o senso comum.

**As opiniões dos artigos/colunistas aqui publicadas refletem unicamente a posição de seu autor, não caracterizando endosso, recomendação ou favorecimento por parte da Live Healthcare Media ou quaisquer outros envolvidos nesta publicação





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