Sindicato dos Médicos pede investigação ao MPF de empresa de prótese no Rio
Parafusos estão quebrando nos organismos dos pacientes e advogados suspeitam de “indicações”
21/05/2015

O Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro protocolou na semana passada um pedido de investigação na Procuradoria da República do Estado das atividades da empresa Technicare Instrumental Cirúrgico, alegando possíveis danos à saúde de pacientes que foram implantados com próteses fornecidas pela empresa, além de suspeita de outras práticas ilícitas. Segundo o MPF, o recurso será avaliado assim que for distribuído para um dos procuradores. Denúncias vêm tomando volume em processos que tramitam atualmente pelos tribunais criminais do Rio contra a mesma companhia, que fornece próteses e insumos cirúrgicos para o mercado brasileiro.

As ações foram movidas por pacientes submetidos a colocação de parafusos na coluna, por profissionais que atuam em hospitais das redes privada e pública e ficaram com sequelas após a ruptura do artefato. O documento emitido pelo Sindicato dos Médicos ao Ministério Público Federal (MPF) tem como base um processo civil movido por um médico ortopedista, que se diz uma das vítimas da empresa Technicare. O Jornal do Brasil ouviu o médico e outras pessoas que estão processando a Technicare após as próteses terem quebrado em seus organismos. Elas relataram seus dramas desde as cirurgias que, segundo os pacientes, resultaram em dores e sequelas permanentes.

Com medo de represálias, o médico pediu para a sua identidade não ser revelada na reportagem. Segundo ele, seu drama teve início em 2008, quando começou a sentir fortes dores nas costas, decorrentes de um problema na coluna. "Em função da minha profissão (cirurgião), eu ficava muito tempo em pé e isso foi agravando o meu caso. A dor foi crescente", conta. O médico procurou um neurocirurgião indicado por um amigo de trabalho, que também atua na sua especialidade. "Esse neurocirurgião disse que o meu caso era cirúrgico e a colocação da prótese era fundamental. Ele foi categórico ao afirmar que tinha que ser implantado um sistema chamado Cosmic, com oito parafusos. E elogiou o máximo este sistema e a sua eficácia, me deixando muito tranquilo", afirmou. O sistema Cosmic é fabricado pela  empresa alemã Urich Medical, representada com exclusividade no Brasil pela Technicare.

Seis meses depois da intervenção cirúrgica, o paciente teve uma dor aguda e, através de exames, ficou comprovado a fratura de três das oito próteses implantadas. Ao consultar outro neurocirurgião, o médico teve a certeza de uma suspeita que vinha tendo há algum tempo: a colocação das próteses foi desnecessária. Um laudo médico emitido por este segundo neurocirurgião aponta como causa da dor lombar do paciente a "instabilidade da coluna lombar por falha de material de síntese". A avaliação acrescenta que o paciente estava com uma "doença discal degenerativa agravada por complicação pós-operatória". O diagnóstico destaca também que o paciente apresentava na época incapacidade física e invalidez temporária, ficando impossibilitado de exercer a sua atividade profissional e, indicando ainda, uma nova cirurgia para retirada do material avariado, que foi realizada em 2010.

De acordo com o médico, a segunda cirurgia não surtiu o efeito esperado e uma nova intervenção já foi indicada pelo neurocirurgião. "A dor crônica te leva à depressão e à fibromialgia. Não consigo mais exercer a minha especialidade médica, que era cirúrgica. Não consigo ficar meia hora, quarenta minutos em pé. Tenho três filhos, o meu padrão financeiro foi abaixo, apesar de eu continuar médico. Tudo o que eu investi em seis anos de universidade e três anos de residência foram por água abaixo em um ato cirúrgico", relata muito emocionado. 

O médico chama a atuação da empresa Technicare e de alguns especialistas como um "descaramento" e uma "tremenda agressão" para a classe, além de fomentar um suposto mercado paralelo que estaria deixando empresários e profissionais da área médica milionários. "Se estão fazendo isso, eles [médicos que fariam parte das supostas fraudes] estão perdendo a vergonha, estão fazendo com quem sabe que vai dar problema, estão se rendendo ao mercado financeiro, de produtos e materiais hospitalares e cirúrgicos. E se fazem comigo, imagina o que fazem com a população mais pobre nos hospitais públicos?", alerta.

 
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Ele afirma ainda que a sua cirurgia foi necessária, no entanto, a colocação dos parafusos foi algo "completamente desnecessário e questionável". "Como pode um material tão caro e que veio com tantas garantias do médico, ter quebrado em seis meses?", questionou ele. Segundo o médico, o valor das suas próteses indicado nos documentos emitidos pelo seu plano de saúde era de R$ 190 mil.

Casos semelhantes envolvendo a Technicare

Uma jornalista que trabalha em um órgão federal no Rio e sofreu danos físicos com a ruptura de uma das quatro próteses colocadas durante cirurgia de coluna, está processando a empresa Technicare Instrumental Cirúrgico Ltda, fabricante do produto. Segundo a vítima, que pediu para não ter o seu nome revelado, o material colocado na sua coluna é de qualidade questionável. 

Portadora de uma hérnia de disco, a jornalista teve que ser submetida a um segundo procedimento para troca da prótese quebrada. Ela fez a primeira cirurgia no ano de 2009, através do seu plano de saúde. Depois de dois anos, a peça fraturou na sua coluna. Segundo a jornalista, o seu médico não apresentou um laudo conclusivo para a fratura, mas cogitou o aparecimento de uma bolha no artefato. "Além do tempo da segunda recuperação, com muito sofrimento, privações, limitações etc, ainda mais duradouro do que a primeira, depois da segunda cirurgia, além de limitações, até hoje tenho dores diariamente e gasto muito dinheiro com remédios, RPG e acupuntura", conta ela. A jornalista está processando a Technicare por danos moral e material e a ação tramita pela 36ª Vara Cível da capital. 

Pela 3ª. Vara Cível da Ilha do Governador corre o processo da assistente administrativa Renata da Silva Roma, de 35 anos, que teve dois parafusos da Technicare que foram implantados em sua coluna quebrados. A história contada por Renata é muito semelhante ao drama dos outros personagens. Hoje, com depressão e fazendo uso de remédios controlados, ela conta que o seu sofrimento começou em 2009, quando descobriu que era portadora de uma hérnia de disco. Segundo ela, o seu ortopedista não deu alternativa para outro tipo de prótese a não ser o sistema Cosmic. “Ele [ortopedista] disse que era o melhor material do planeta e em nenhum momento informou que um dia o parafuso pudesse quebrar. Se ele tivesse me alertado para uma possível quebra, eu jamais autorizaria a cirurgia”, enfatizou Renata.

Em 2011, dois parafusos quebraram no organismo de Renata, quando ela tentava levantar da sua cama. “Senti uma ardência , escutei um estalo e fiquei apavorada. É uma dor horrível”, lembra ela. Ao procurar o mesmo ortopedista, Renata foi informada que o rompimento de uma prótese pode acontecer em 20% dos casos e que o material danificado deveria ser retirado em um novo procedimento. O especialista voltou a operar Renata, assim como utilizar o material da mesma empresa. Cinco meses depois, nova ruptura das próteses deixaram  a paciente sem mobilidade. Renata procurou um segundo especialista, que confirmou a quebra de dois parafusos da Technicare e teve que passar pela terceira cirurgia, em agosto de 2013.

“Hoje a minha vida acabou, eu não consigo mais trabalhar, tenho que tomar remédios, ainda sinto dor e tenho que ficar dependente das pessoas”, lamenta. O texto elaborado pela defesa de Renata no processo que corre na Vara Cível, destaca que o médico que a atendeu primeiramente não poderia omitir informações sobre as possíveis conseqüências da cirurgia. “E um médico não pode se prender a um fornecedor. Ouvimos de outros profissionais que há parafusos melhores, de outras empresas, mas são mais caros. Então, as indicações para apenas uma empresa é algo suspeito e pode ser para favorecer terceiros”, salientou o advogado Jacy Adad.

O advogado Leandro Braga conta que o seu cliente, Rodrigo Bocard, entrou com processo contra a Technicare na 2ª. Vara Cível de Teresópolis, na Região Serrana do Rio. De acordo com o jurista, Bocard teve parafusos fornecidos pela empresa quebrados na coluna, o que provocou muitas dores e uma mudança radical na sua rotina. Ele também questiona a qualidade do produto. O mesmo aconteceu com o motorista Jorge Mazzei, que teve quatro parafusos quebrados no organismo. O advogado que acompanha o processo de Mazzei na 5ª. Vara Cívil de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Ed Wilson, conta que o caso chegou a ser registrado na delegacia que atende a região – “porque a direção do hospital em que o meu cliente foi operado estava se recusando fornecer o prontuário médico, mas conseguimos através da polícia”, conta.  

Para o presidente do Sindicato dos Médicos do Rio, Jorge Darze, é preciso uma investigação sobre os casos que estão tramitando na Justiça envolvendo a companhia. Darze acredita que o Ministério Público pode solicitar um exame técnico para constatar a qualidade do material da empresa, inclusive avaliar os insumos que estão sendo fornecidos para hospitais públicos e hoje estão em seus estoques. “Se ao longo dos anos uma empresa é sempre beneficiada em licitações, há necessidade de uma investigação sobre isso”, disse Darze.     

Resposta da Anvisa sobre o caso

Em nota, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alegou que "diante da falta de dados do produto em específico", o órgão só poderia dar uma "resposta geral sobre a forma de atuação da Anvisa na regulação de produtos para saúde, com destaque para os implantes de coluna". 

Segundo a agência, "os produtos sujeitos a vigilância sanitária devem ser registrados na ANVISA antes de serem  comercializados no Brasil, entre eles os implantes ortopédicos. As empresas estrangeiras com interesse em comercializar produto no Brasil necessitam ter um importador sediado  neste país. De acordo com a legislação vigente,  o detentor do registro deve garantir que o produto seja seguro e eficaz; que os produtos disponibilizados no mercado cumpram com seu objetivo, de acordo com o seu registro na Anvisa; bem como deve observar as boas práticas de fabricação de produtos para a saúde.

O responsável pela qualidade do produto é o próprio detentor do registro (fabricante ou importador). As empresas fabricantes  sediadas fora do Brasil são inspecionadas pela ANVISA, ao passo que as sediadas no Brasil são inspecionadas pelos entes locais da vigilância sanitária (Vigilância sanitária Estadual ou Municipal, a depender da pactuação).

As suspeitas de problemas envolvendo produtos para a saúde devem ser notificados pelos detentores do registro do produto (de forma compulsória), pelos profissionais e pelos serviços de saúde (de forma espontânea), por meio do sistema de informação NOTIVISA. Os usuários dos produtos, caso desejem notificar ou reclamar, devem utilizar os demais canais disponibilizados pela ANVISA ou vigilância sanitária local.

Os dados oriundos das notificações ou reclamações recebem um tratamento de análise da Anvisa, a fim de confirmar ou de verificar os problemas que o produto pode estar causando. Para isso, é necessário que mínimas informações sejam fornecidas pelo notificante ou reclamante, tais como, número do registro; nome do produto; lote/série de fabricação; problema ocorrido, etc.

Da mesma forma, a busca no banco de dados sobre eventuais relatos de problemas precisa ser feita a partir de dados objetivos sobre o produto que se pretende pesquisar. Ressalta-se que não há ferramentas para identificar problemas envolvendo produtos para a saúde, somente com as informações trazidas pela repórter.

Portanto, serão necessárias mais informações a respeito do produto, para que possamos desencadear uma pesquisa no banco de dados.

Apesar da falta de informações para uma busca apropriada no NOTIVISA  e da limitações de busca dos nossos sistemas, nossa área de monitoramento de produtos para a saúde verificou, em 4/2/2014, os relatos/reclamações recebidos via Ouvidori@tende e SAT de 2014 até a presente data. Em uma pesquisa realizada por assunto, utilizando-se as palavras-chave “IMPLANTE” e “IMPLANTES”, não foram encontrados registros referentes a esses produtos." 

Sobre a Technicare

O site da Technicare Instrumental informa que a empresa foi fundada em 1985, por Terezinha Farag de Oliveira, mas se especializou em material neurocirúrgico em 1990, expandindo a sua atuação através de parcerias com empresas estrangeiras. O texto na primeira página do site destaca que a Technicare também investe na educação continuada dos médicos, através de cursos e palestras no Brasil com especialistas do exterior. A empresa tem filiais na Bahia e em São Paulo.  

A Technicare teve o seu nome relacionado em agosto de 2013 em uma reportagem doJornal Extra, que destacava uma ação da Delegacia de Defraudações para investigar um esquema de superfaturamento de cirurgias pagas pelo plano de saúde do Correios. Segundo a publicação, o inquérito apurava na época denúncia de corrupção ativa dentro da estatal, que pagou R$ 961.886,56 por uma lista com 15 itens, entre parafusos, porcas e ruelas usados em uma cirurgia de coluna. Segundo a reportagem, o material foi vendido por um representante oficial no Brasil da Technicare, por R$ 65.208, para a AC Consultoria e Assessoria em Saúde. A Technicare apontou a AC Consultoria como responsável pela compra, no entanto, o nome da empresa não aparecia como fornecedor do Correios, mas sim outra entidade, a O2 Surgical. 





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