Complexo Econômico-Industrial da Saúde: o que esperar?
30/10/2023

A promessa de fortalecer o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) da campanha presencial se concretizou. No dia 26 de setembro, foi anunciado pelo Governo Federal o investimento de R$ 42 bilhões, até 2026, na estratégia, que envolve 11 ministérios.

Dados do Ministério da Saúde mostram que metade dos equipamentos médicos usados no Brasil são importados. Em relação aos ingredientes farmacêuticos ativos, os IFAs, fundamentais para a produção de vacinas e medicamentos – e dos quais muito se ouviu falar durante a pandemia de Covid-19 -, o dado é ainda mais preocupante: 90% são provenientes de outros países. Em relação aos equipamentos médicos, 50% vêm de fora – já 60% dos medicamentos finais são importados.

 

Com seis programas estruturantes (Programa de Parceria para o Desenvolvimento Produtivo [PDP]; Programa de Desenvolvimento e Inovação Local; Programa para Preparação em Vacinas, Soros e Hemoderivados; Programa para Populações e Doenças Negligenciadas; Programa de Modernização e Inovação na Assistência; e o Programa para Ampliação e Modernização da Infraestrutura do CEIS), o objetivo é expandir a produção nacional de itens prioritários para o Sistema Único de Saúde (SUS) e reduzir a dependência do Brasil de insumos, medicamentos, vacinas e outros produtos de saúde.

Entre o investimento até 2026, R$ 9 bilhões serão previstos pelo Novo PAC (Programa de Aceleração ao Crescimento). Já o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) deve participar com R$ 6 bilhões e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com outros R$ 4 bilhões.
 

O Governo Federal prevê ainda aporte de cerca de R$ 23 bilhões da iniciativa privada. Assim, o Governo visa suprir o SUS com a produção e tecnologia locais, além de frear o crescimento do déficit comercial da Saúde, de 80% em 10 anos. Em 2013, o déficit era de US$ 11 bilhões. Hoje chega a US$ 20 bilhões.

Importância do fortalecimento do complexo industrial

É muito importante para o Brasil (e a pandemia nos mostrou isso) reduzirmos a dependência de insumos fundamentais, cuja produção hoje é muito dominada pela Índia e China. O Brasil tem de ser capaz de produzir, ao menos, um estoque estratégico para não passarmos pelas dificuldades que passamos durante a pandemia”, avalia Josier Vilar, presidente da Iniciativa FIS, um ecossistema que reúne lideranças e empresas da saúde da América Latina.

A pandemia mostrou a vulnerabilidade do país em relação à dependência de insumos importados, e também deixou uma lição. Em outubro, a Oxfam Brasil, em parceria com a Fiocruz Amazônia, publicou uma nota técnica - "Capacidade de Produção de Vacinas no Brasil” -, na qual alerta que o país não está preparado para enfrentar eventuais novas pandemias por conta da falta de investimento no setor industrial que fornece insumos e outras ferramentas para a área de saúde. Isso parece tornar mais urgente que os investimentos propostos no complexo industrial da saúde se tornem realidade.

Na opinião de Walter Cintra, membro do FGVsaúde - Centro de Estudos em Planejamento e Gestão em Saúde da FGV EAESP, ter um complexo industrial é fundamental para que o país tenha maior sustentabilidade em relação à saúde.

Para Gonzalo Vecina, médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), um país que tem um mercado de 210 milhões de consumidores garantidos pela existência do SUS e da medicina suplementar, e com tamanho equivalente à metade da Europa, significa duas coisas: que tem escala econômica para produzir muita coisa - e que, dependendo do mercado mundial, poderá inclusive conquistar outros mercados -, e que, sendo um grande consumidor, não pode ficar dependente de itens críticos como vacinas, por exemplo.
 

“Não se trata de produzir tudo, mas de selecionar o que tem que ser produzido localmente devido aos riscos de desabastecimento, como vivemos recentemente com a pandemia”, avalia ele.

Além disso, destaca Vilar, o complexo industrial da saúde deve focar esforços tanto na incorporação de tecnologias já desenvolvidas quanto no incentivo à inovação e à transformação digital no país.

Medidas prioritárias

Para Vilar, fortalecer a produção e a inovação na saúde exige, antes de mais nada, a criação de um ambiente de segurança jurídica de longo prazo, a criação de políticas públicas que incentivem a inovação, além da criação de um ambiente de negócios atrativos para se empreender no Brasil.

“Tanto na área pública quanto na área privada, temos que ter uma cadeia de produção em termos de insumos e equipamentos para que a população tenha mais acesso à saúde. Nesse contexto, é importante que o Governo tenha políticas públicas de fomento, garantindo financiamento direcionado para as necessidades da população. É preciso fomentar o desenvolvimento, a inovação e a produção, mas sem perder de vista o papel principal das políticas a serem desenvolvidas que deve ser o de atender às necessidades da população. O programa deve estar condicionado ao interesse público, seja no sistema de saúde público ou privado”, ressalta Cintra.

Vecina ressalta que universidade, Estado e setor privado devem estar unidos para operar, mas é a vontade do Estado que deflagra a operação, principalmente através da criação de políticas estruturadas e seus incentivos, como ocorre nos países centrais e nos periféricos que emergiram,  como a Coreia do Sul, China e Índia.

“Não é a mão invisível do mercado que cria essas condições. É a ação do Estado criando as condições adequadas para a universidade criar linhas de pesquisa, formar doutores que multipliquem o conhecimento e criar órgãos de apoio”, opina Vecina.
 

Uma das apostas do Governo está na colaboração entre setor público e privado, por meio das (PDPs), para financiar o complexo industrial da saúde. E esse deve ser o caminho, na opinião Cintra.

“A inovação não deve ser vista como um processo solitário. Para acontecer, ela deve contar com a colaboração de todo um ecossistema. O apoio da iniciativa privada é fundamental. Ao Estado, deve caber o papel de aparelho fiscalizador e de fomentador. Já a iniciativa privada deve ser a principal executora, porque ela tem mais agilidade para isso. O Governo tem que garantir que os cidadãos tenham acesso igualitário aos cuidados de saúde, lembrando que, quanto mais temos novas tecnologias sendo desenvolvidas, maior a dificuldade de acesso. A iniciativa privada tem o papel de fazer a inovação, de desenvolver e executar novos produtos e de estabelecer parcerias.”

O sistema de saúde privado, lembra ainda Cintra, também se beneficiará do complexo industrial da saúde. “Quando temos no mercado mais recursos, insumos, equipamentos e sistemas organizacionais, tudo fica mais fácil e mais barato. Desenvolvendo esse setor, podemos ter condições de desenhar novas configurações de serviços, porque teremos acesso a mais recursos quando pudermos contar com uma cadeia produtiva nacional.”

Desafios

“Os investimentos no complexo industrial da saúde são bem-vindos e necessários, sem dúvida, mas o Brasil precisa desenvolver estruturas organizacionais que permitam um crescimento sustentável. É urgente discutirmos o modelo atual de saúde que temos hoje”, analisa Cintra.

Segundo ele, o SUS precisa ser reorganizado para que o serviço seja mais resolutivo, e na área privada é preciso haver mais segurança em relação aos contratos. “Esses dois pontos, da maneira como estão estruturados atualmente, nos levam à judicialização, que impacta negativamente tanto a saúde pública quanto a privada e precisa ser discutido.”

Cintra cita um modelo que pode servir de norte para o sistema de saúde brasileiro que é o do Reino Unido, onde não existe a judicialização. “O país conta com um órgão que define quais tratamentos e tecnologias serão disponibilizados à população. Não adianta entrar na justiça porque não é o juiz que vai garantir o acesso. O Brasil não pode ter um sistema judiciário que defina os tratamentos que serão oferecidos. Essa não é uma esfera com competência para esse tipo de análise.”
 

Ele prossegue, dizendo que o sistema de saúde brasileiro é um dos melhores do mundo, mas é preciso que a forma de organização e de acesso seja repensada.

Incentivo à pesquisa e inovação

A inovação, na opinião de Cintra, é fundamental no complexo industrial da saúde e para isso é preciso investir na criação de conhecimento científico. “O papel das universidades é essencial, principalmente das instituições públicas, que são o celeiro das pesquisas.”

Mas nos últimos anos também tem sido possível observar os investimentos de instituições privadas em educação e pesquisa. “Como exemplo, temos o Hospital Israelita Albert Einstein, o Grupo Fleury e a Dasa. A indústria farmacêutica, na outra ponta, pode trabalhar junto com universidades. Tem que haver parceria entre o público e o privado.”

Para Vilar, valorizar a pesquisa, a inovação, incentivar o modelo de economia colaborativa entre os diversos setores da economia da saúde, facilitar a integração dos dados públicos e privados da saúde para reduzir o desperdício e construir uma relação de diálogo e confiança no ecossistema da saúde são os passos que precisam ser dados para fortalecer o setor de saúde no Brasil.

“A ciência brasileira tem que se envolver com a ciência mundial na formação de doutores que pesquisem, publiquem e leiam o que se produz no mundo. Tudo isso está muito interligado”, conclui Vecina.

Em relação à nota técnica publicada pela Oxfam, comentada no início desta reportagem, a recomendação da entidade aponta dois caminhos diante do cenário atual: investimentos em ciência nacionalmente e cooperação internacional entre os países da América Latina. 





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