Prestes a completar nove meses como CEO da Sulamérica Saúde e Odonto, Raquel Reis, experiente no setor de saúde suplementar, pode comemorar — ainda timidamente — os resultados positivos da empresa. Em conversa com a EXAME, ela esclarece seu projeto para a empresa: reestruturar a companhia, recompor os prêmios e coibir fraudes, incorporando inovação a um setor marcado pelo tradicionalismo e investindo em capital humano.
"Não é que não queiramos que as pessoas usem plano de saúde. Muito pelo contrário, queremos que usem da maneira correta até para que usem melhor", afirma Reis.
No último trimestre, a empresa surpreendeu analistas do mercado financeiro. As receitas cresceram 18% na comparação anual e o índice de sinistralidade (que mede a relação entre custos dos serviços e os valores recebidos pela contratação do plano) caíram para 86%, refletindo aumento dos preços e melhoria dos controles de custo. Com isso, o EBTIDA finalizou o período com perdas de R$ 7 milhões, número muito melhor do que os cerca de R$ 70 milhões esperados pelo mercado.
A meta número um é recompor a rentabilidade. Precisamos da sustentabilidade para esse setor, que desafoga o SUS. Cada vida que o setor de saúde suplementar perde é uma vida a mais para onerar o SUS. Quando falamos de rentabilidade o assunto é amplo. Iniciamos com a recomposição de prêmio [o quanto a operadora recebe dos beneficiários]. Durante a pandemia, os relatórios de sinistralidade [o uso ao acionar o plano de saúde] ficaram artificialmente baixos porque houve uma baixa momentânea de utilização, principalmente eletiva e ambulatorial com cirurgias que precisavam ser remarcadas. Ficamos com uma base de prêmio aquém do que deveria estar. Quando voltou ao patamar normal, voltaram também os procedimentos que deveriam ter acontecido. Isso dá um boom e leva a uma explosão de sinistralidade.
De que ordem é essa recomposição?
A recomposição de um prêmio que ficou com defasagens durante dois anos não acontece de uma hora para outra. Muitas empresas não estavam prontas para fazer um reajuste na ordem de 40% a 50%. Em alguns casos é esse desequilíbrio que vemos. É muito ruim também para a empresa prestadora de serviços sentar com o cliente e dizer que a cada um real que está entrando estou perdendo 30 centavos, numa hipótese de uma sinistralidade de 130%, e preciso de um reajuste eventualmente de 50%. Não se faz isso do dia para noite. Isso começou ano passado, quando o setor teve um prejuízo histórico. Mas vimos uma evolução de reajuste começando a acontecer de maneira importante esse ano, e isso está vindo mais forte.
Especificamente no caso da SulAmérica em quanto está essa sinistralidade?
Divulgamos no primeiro trimestre uma sinistralidade quatro pontos abaixo. Depois, no segundo trimestre de 2023, mais dois pontos abaixo. Cada ponto percentual é muito dinheiro em uma operação de 26 bilhões de reais. Tem muito que ser feito. Quando olho a sinistralidade acumulada no ano, estou com algo em torno de 87,2%. A maioria dos breakevens contratuais ficam na casa de 75%. Então, falta ainda um caminho considerável, mas começamos.
Qual o objetivo para o final do ano?
Ter uma sinistralidade consideravelmente abaixo do que apresentamos ano passado e continuar nesse caminho de melhoria trimestre a trimestre. Do lado de sinistro, tivemos a oportunidade de conversar sobre fraudes e modelos de remuneração. Temos mais de 100 notícias-crime em andamento. Temos ido para cima efetivamente de prestadores de serviço que não fazem parte da rede credenciada e que divulgam nas redes sociais como fazer um botox pelo convênio. É fraude. Temos buscado muito educar o beneficiário final e empoderá-lo. Algumas vezes, eles são coniventes com as fraudes. Outras vezes nem entendem que participam de uma fraude. Para se ter uma ideia, o reembolso chegou a significar 14% de todo o sinistro pago. Há alguns anos, estava entre 9% e 11%. Já vimos um arrefecimento. Então, [a expectativa] é de ficar na casa de 11% até o último trimestre fechado.
Qual o prejuízo com fraudes hoje anualmente?
Difícil estimar. Uma parte é fraude, outra, abuso. Quantas pessoas fazem exames ou vão ao pronto socorro de forma desnecessária, às vezes para pegar um atestado médico? Isso é fraude? Acho que não. É um abuso. Passar no médico, pegar o pedido para fazer cem exames, fazer os exames e não voltar para buscar os resultados e levar ao médico é fraude? Não é fraude, é uma cobertura contratual. É um desperdício. Quando juntamos tudo, e vou dar uma opinião muito particular, tem algo em torno de 15% a 20% do sinistro gerado que poderia não existir ou existir de uma forma muito mais resolutiva. Se a pessoa faz a primeira consulta, faz e pega seus exames, volta ao médico, recebe diagnóstico e inicia o tratamento, isso é um dinheiro bem investido. Vai evitar um gasto futuro relevante. O que leva, ainda dentro desse pilar de rentabilidade, a novos produtos. Temos que sair do "mais do mesmo". Nesses quase nove meses, lançamos uma quantidade grande de novos produtos, modulamos a coparticipação, reembolso. Temos o reembolso, mas não necessariamente reembolso para qualquer procedimento. Temos uma gama ampla de laboratórios referenciados na rede. Por que o reembolso com exames tem sido hoje a maior a maior causa de reembolso dentro da operadora? Isso é no mercado como um todo. Historicamente, o maior volume de todo o reembolso pago são consultas e honorários médico-cirúrgicos. Isso se perdeu. Hoje é exame, depois terapia, consulta e honorário médico-cirúrgico. Esses novos produtos que estamos lançando estão modulando a coparticipação. Quer um reembolso de consulta? Tem. Quer fazer um exame? Não tem.
Você se referiu a outras frentes de prioridades. Quais seriam?
Focamos muito na experiência do cliente. Temos que ter a maior qualidade assistencial, o produto certo para aquele cliente. Uma rede médica mais próxima e resolutiva, além de canais de comunicação com o cliente que se comuniquem com ele na hora e na forma que ele quiser. É uma jornada longa, mas que já começou e foi reconhecida recentemente quando a SulAmérica ganhou prêmio de melhor operadora na avaliação dos consumidores [uma pesquisa feita pela revista Veja]. Em um setor que é tão crítico, dá muito orgulho. Especialmente em um ano tão desafiador. O reajuste médio está alto, superando 20%. O cliente tem que se tornar cada vez mais empoderado e responsável. Muitas vezes a relação é infantilizada. Se você perguntar para alguém da sua família, dificilmente vão saber como é a lógica de um plano de saúde. As pessoas têm dificuldade de entender a relação de causa e consequência desse consumo desordenado. Grande parte desse problema é causada por nós, que talvez não demos a informação da forma correta.
O setor de saúde suplementar teve um ano de 2022 bem desafiador com o pior desempenho econômico-financeiro desde 2001. Como mudar isso?
O setor não muda isso sozinho. O setor passa pela cadeia de saúde suplementar como um todo, pelos prestadores de serviço, médicos, hospital, laboratório, pela formação médica. As faculdades de medicina têm uma uma cadeira obrigatória de gestão de saúde privada? O médico sai de lá sabendo administrar seu próprio consultório e o que que vai causar cada prescrição de 200 exames? Não sabe, isso não é uma cadeira obrigatória. Também passa pelo consumidor final e empresas. Uma Febraban ou uma CNI têm que entrar mais para o jogo e entender o que é o rol de procedimentos [da ANS]. Qualquer coisa que seja arbitrada para pagamento pela agência reguladora, a operadora paga. Em um primeiro momento. Mas a operadora faz uma intermediação. No momento seguinte, vou calcular o reajuste para fazer frente ao valor que está vindo. No final do dia, os grandes pagadores são as empresas contratantes, mais de 80% dos planos privados no país. A evolução tecnológica é ótima, vamos começar a ter novas curas para coisas que não existiam. Só que tem um preço.
Você citou o rol de procedimentos da ANS. Como está o balanço dessa mudança?
Evolutivo. Isso já existia e tem vindo com muito mais velocidade desde que tivemos esse entendimento entre rol taxativo versus rol exemplificativo. Foram retirados limites para diversos tipos de terapias e elas passaram a ter uma representatividade no sinistro muito grande. Uma parte dessas terapias é correta e necessária. Outra parte está representando uma sobrecarga desnecessária para o setor como um todo que vai voltar para o bolso do do consumidor final seja para o contratante do plano individual seja para o contratante de plano empresarial.
Tem algum tratamento específico quando você fala isso?
Os mais impactantes são os medicamentos que entraram no rol ultimamente, e os que chegarão brevemente. Tem terapia gênica, que não está no rol, mas que tem uma chance de ser incorporada — inclusive algumas já sendo judicializadas.
Você citou um pilar de investimento em pessoal dentre suas prioridades. Como está isso?
É um caminho com cada vez mais força: ter um time diverso. Na qualificação, cada vez mais ter um papel de gestor de saúde e menos de gestor de doença. É uma virada complexa. Temos investido em criatividade e disrupção, inclusive permitindo erros. Nunca vamos fazer diferente se não nos permitirmos errar. Esse tem sido um dos maiores desafios. É um mercado mais arcaico, o de seguros. Tem algumas verdades absolutas que temos questionado. Só nesses últimos oito meses, devemos ter lançado mais produtos do que nos últimos cinco anos.
Nesse ponto, entramos no ponto que você falou sobre novos produtos, com modulação de coparticipação. Qual é o carro chefe desses produtos?
A coparticipação já vinha forte, e está ganhando cada vez mais força, principalmente no varejo. Quando falamos de grandes contratantes, a maioria já estava contratando com coparticipação. Tem um legado de grandes empresas com mais de 75% delas com algum tipo de coparticipação, em média de 20% a 30% de coparticipação em procedimentos ambulatoriais. Nas contratações novas mais de 90% estão vindo com a coparticipação. O que tem chamado atenção do lado muito positivo é o varejo, como aquela empresa com duas, três ou cinco vidas que era muito resistente a isso. Hoje, mais de 30% da venda já vem com coparticipação. Estamos plantando uma safra que vai dar frutos muito melhores nos próximos anos. Outro ponto que está chamando muito a atenção é a modulação de reembolso. As pessoas estão começando a abrir a cabeça e entender que quantidade não significa qualidade.
A pandemia deixou um legado para o sistema de saúde suplementar?
Historicamente, o plano de saúde sempre esteve entre os três maiores desejos da população. As pessoas têm tido um olhar mais preventivo. Como faço para estar saudável? Não sabemos o que vai chegar, qual vai ser a próxima pandemia. Nessa linha, temos tentado promover hábitos mais saudáveis. Investimos em dar cashback para o nosso beneficiário que tem uma periodicidade de treino no Gympass. Antes, a pessoa que precisava ir ao médico ou psicólogo necessariamente tinha que se dirigir de forma física. Hoje, é onde ela quiser. Temos uma rede de médicos preparados para atender como se fosse substituição ao atendimento de pronto socorro — não para as urgências de acidente, obviamente, mas uma dor de garganta, quadro de sinusite. É mais barato, não expõe a pessoa ao risco de um pronto-socorro. Tínhamos vergonha de falar de saúde mental. A quantidade de sessões de psicólogos que passaram a acontecer depois da pandemia é estarrecedora.
Tem algum número que ilustra essa tentativa de prevenção das pessoas?
Telemedicina de forma assombrosa. A questão de uma rotina mais saudável dos beneficiários também. Nessa campanha do Gympass, 200.000 pessoas se cadastraram — sem campanha de mídia massiva. Simplesmente foram as pessoas buscando essa lógica, inovadora e que não existia no mercado. As pessoas falam sempre que as operadoras de saúde querem economizar e não querem pagar. Não é verdade. Geramos voucher e mandamos para mulheres [com quadro de risco] dizendo: seu exame preventivo, como uma mamografia, está pré-autorizado, é só agendar. Assim que o resultado ficar pronto, tem um médico à sua disposição. Esse não é um gasto que eu necessariamente teria agora, mas é um gasto bom. Um câncer de mama que evitemos num universo de 10.000 pessoas, provavelmente pagou ação de todos os exames preventivos que foram feitos. Agora, não é tudo para todo mundo. Tem que fazer essa segregação de quem precisa fazer efetivamente.
Agentes de mercado destacaram o resultado da SulAmérica no segundo trimestre — com um prejuízo muito menor do que o esperado e ganhos de sinergia da fusão com a Rede D'Or. Como está o processo de sinergia?
A SulAmérica responde para a holding da Rede D'Or. Desde o primeiro momento, a Rede D'Or fez questão de manter as operações segregadas. A SulAmérica não correu o risco em nenhum momento de virar um departamento da Rede D'Or. Isso contou com todo um planejamento, quando foi tomada a decisão de compra e desde o momento que saiu a autorização do Cade. Em muitos momentos, temos discussões aqui que, se você tivesse à mesa, perguntaria se somos da mesma empresa. Em um primeiro momento, muita sinergia foi gerada porque permaneceu dentro da SulAmérica o que efetivamente é core. O que é core? A unidade de negócios que administra o plano de saúde como um todo, que faz a criação de produto, que faz o relacionamento com o cliente, que faz um relacionamento com prestador, isso é core. A Rede D'Or tem 73 hospitais. Comprávamos bastante medicamentos até para distribuição de quimioterápicos orais em casa. Com todo o poder de barganha que tínhamos, não era um décimo do da Rede. Eles conseguem um ganho de escala e uma negociação muito melhores. A diretriz do que tem que ser comprado é nossa, é core. Obviamente, é uma operação em evolução ainda, mas muita coisa já foi já foi sinergizada. Olhando para para o histórico, pelo menos da indústria de saúde, nunca vi uma sinergia tão rápida.
Quantas vidas a SulAmérica assegura atualmente?
Em Saúde e Odonto, batemos a marca histórica de 5 milhões — 2,7 milhões em Saúde e 2,3 milhões em Odonto.
E qual o plano de expansão?
Temos uma marca estabelecida, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro. Temos voltado a explorar com mais apetite regiões do Nordeste, como Salvador, Recife, Maceió e indo mais forte para o Centro-Oeste, no Distrito Federal. Em Belo Horizonte, estamos entrando de uma forma diferenciada. No Sul, tem regiões com PIB per capita muito alto. Vamos dar um olhar específico. Em alguns momentos as estratégias de expansão se casarão. A Rede D'Or comprou um hospital em Feira de Santana que tem um espaço para crescimento e não tem uma penetração da SulAmérica. Esse é um espaço para fazermos juntos. Em outras regiões, não necessariamente. Vemos uma oportunidade em Santa Catarina, onde não tem nenhum hospital da Rede. Mas continua sendo uma região de interesse. Em alguns momentos as estratégias se casam e em outros não estão necessariamente juntas.