A digitalização desempenhou um papel fundamental para ajudar a melhorar as comunicações e a eficiência em grande parte do setor de saúde e deve ser adotada ainda mais amplamente daqui para frente. Mas como podemos garantir que as tecnologias digitais em desenvolvimento sejam baseadas nas necessidades dos pacientes e profissionais da saúde no momento em que eles mais precisam?
Implicações do mundo real
Quando você observa como a tecnologia médica é projetada e como chega aos hospitais ou aos ambientes de atendimento, você verá que na maior parte das vezes é um processo fragmentado. Novos dispositivos são adquiridos com base em seus custos e conjuntos de recursos, mas quando são usados em contextos clínicos do mundo real, podem surgir falhas. Isso ocorre devido à desconexão entre o uso pretendido para o qual a tecnologia foi desenvolvida e os contextos da realidade. O metaverso talvez seja um exemplo mais fácil de entender – na teoria é perfeito e irá revolucionar parte da saúde, mas na prática ainda não se tem uma utilidade “palpável”. Essa desconexão pode atrasar a adoção de tecnologias na área da saúde, dificultando os esforços para fornecer o melhor atendimento, afetando negativamente a experiência dos pacientes, dos sistemas de saúde e a indústria.
Inevitavelmente, quando você começa a usar um novo produto ou sistema, podem surgir falhas não intencionais que nem mesmo um bom planejamento pode prever. Registros Eletrônicos de Pacientes (EPRs) são um bom exemplo. Eles fornecem informações valiosas sobre um paciente e seu histórico médico durante a transição por um caminho de atendimento hospitalar sem a necessidade da papelada física. Eles podem ajudar a limitar a falta de comunicação e, em alguns casos, fornecer proteções de segurança essenciais para interromper o excesso de exames e tratamentos desnecessários. Entretanto este é mais um exemplo de que na teoria tudo funcionaria perfeitamente bem. No campo de batalha das trincheiras da vida real, usar as mais diversas plataformas de EPRs já é um desafio imenso. Associado a isso existe a questão da falta de comunicação entre eles – a tão falada interoperabilidade. Além disso, alguns profissionais de saúde com habilidades limitadas e mindset fechado para o uso de novas tecnologias consideram esses sistemas assustadores e, muitas vezes, precisam aprender a usar diferentes EPRs, caindo em uma romaria de migrar de um programa para outro.
Outro exemplo são as enfermarias virtuais – espaços digitais onde os pacientes podem se registrar antes da cirurgia e obter aconselhamento personalizado sobre o que fazer e o que não fazer antes de uma operação. Eles provaram seu valor reduzindo os cancelamentos de cirurgias de última hora (e seu impacto devastador nas listas de espera e no atendimento ao paciente). No entanto, para usar esse ambiente digital, você precisa ser alfabetizado digitalmente e ser capaz de interagir com um ambiente virtual. Nem todo paciente tem capacidade, conhecimento ou acesso para fazer isso.
O foco da inovação é quem?
Mesmo quando o impacto positivo dessas tecnologias recém-adotadas é aparente, como inovadores de saúde, devemos nos esforçar para ir além, colocando pacientes e profissionais de saúde no centro do processo de inovação.
Esse processo de inovação geralmente existe em sistemas complexos, onde vários grupos de usuários e partes interessadas têm diferentes necessidades e expectativas sobre o que um dispositivo ou sistema digital pode alcançar e o que vai fazer por eles. Com as novas tecnologias digitais, precisamos considerar as necessidades de cada grupo distinto de usuários, estabelecendo contato direto com eles para remover quaisquer suposições incorretas que possam existir. Além do mais, precisamos entender completamente a configuração do mundo real de como um dispositivo é usado para agregar valor aos pacientes e profissionais de saúde, tendo em mente os usuários e as práticas de design centradas no ser humano desde o início. É por isso que muitos novos aplicativos acabam “importando” funcionalidades e design parecidos com os dos apps mais usados no mundo: Instagram, Uber, Ifood e seus semelhantes, etc.
Qual é a solução?
Quando se trata da digitalização da saúde, precisamos de uma mudança de paradigma – de um modelo em que asno qual as empresas de tecnologia vendem soluções prontas, para outro que promova melhor a colaboração e parceria entre as duas partes. Aquele em que os estágios de descoberta, design conceitual, teste do usuário, monitoramento, manutenção e iteração são uma parte intrínseca do processo, envolvendo os próprios pacientes e profissionais de saúde que irão usá-lo em suas vidas e trabalhos diários. É erguer as mangas e ir pro front ver qual é a real necessidade de cada um.
Reservar um tempo para fazer pesquisas e conversar no início de qualquer projeto garantirá que todas as ações sejam baseadas em insights reais e que as alterações feitas serão realmente para melhor. A partir daqui, a medida que o processo de desenvolvimento avança, as equipes podem começar a filtrar as ideias de acordo com os objetivos comerciais e de negócios. Este não é um processo linear, mas cíclico. Quando todas as partes interessadas trabalham em estreita colaboração, é mais fácil garantir que as soluções respondam às necessidades do usuário, mas também sejam viáveis e fundamentadas na realidade.
Portanto, no caso de EPRs, construir sistemas de software desde o início e envolver os usuários durante todo o desenvolvimento aumentará a probabilidade de sucesso e adoção. Tornar o EPR um padrão nacional ajudará muito os profissionais de saúde que só precisarão aprender um sistema. Finalmente, se o treinamento for tratado como um elemento igualmente importante do sistema a ser projetado em paralelo (e não apenas incorporado no final), é provável que surja um produto final mais bem-sucedido e inclusivo.
O novo nem sempre significa melhor
Como reconhecemos o valor da digitalização na área da saúde, vale a pena notar que adicionar novos componentes de tecnologia a um produto ou sistema existente pode resultar em custos adicionais, complexidade e aumentar o risco de erros durante o uso. Também devemos lembrar que os novos recursos tecnológicos podem assumir a forma de um produto físico adicional que as pessoas devem armazenar, carregar e lembrar de ter consigo – exemplo: eu vou criar um aparelho que entregue a medicação ao longo do dia nos horários determinados pelo médico; se o paciente sair, ele tem que levar junto. Pense nas dificuldades que isso pode apresentar para os usuários.
Também precisamos reconhecer que o valor da tecnologia nos estágios iniciais do desenvolvimento pode ser difícil de mensurar. À medida que avançamos com a pesquisa e o teste do usuário, não é incomum que recursos que inicialmente pareciam atraentes se mostrem menos relevantes ou úteis. Portanto, por mais sedutoras que sejam as tecnologias conectadas, devemos nos basear nas necessidades reais do usuário e estar atentos para não superestimar seus benefícios. O real valor da inovação vai aparecendo ao longo do processo.
Seguindo em frente
A adoção bem-sucedida da tecnologia raramente é impulsionada pelo o ela pode fazer, mas sim pela forma como as pessoas interagem com ela e percebem seus benefícios. Isso é particularmente verdadeiro na área da saúde. A idade, o histórico, as habilidades físicas e cognitivas e as influências socioculturais afetarão significativamente a disposição do paciente de interagir com um novo dispositivo. Mesmo pensando na terceirização dessa interação (esperar que um filho/neto vá ensinar o avó a como usar um aplicativo, por exemplo), a adesão pode ser muito mais difícil.
À medida que as tecnologias conectadas continuam a permear os ambientes de saúde e os pacientes continuam a assumir um papel mais ativo nas decisões sobre sua saúde, manter os usuários no centro do desenvolvimento de dispositivos médicos é mais importante do que nunca. Só então seremos capazes de desenvolver produtos tecnológicos atraentes, melhorar a qualidade do atendimento e manter a integridade, segurança e eficácia de nossos sistemas de saúde.