Protagonista de um dos mitos mais famosos da antiguidade, o guerreiro grego Odisseu se tornou célebre por sua estratégia ímpar de ataque aos inimigos troianos. A tática consistiu em presenteá-los com um gigantesco cavalo de madeira, como símbolo de rendição à guerra. Com isso, os troianos comemoraram a vitória antecipada que fora entregue pelo adversário, mas, na mesma noite, após os soldados caírem no sono, centenas de homens gregos saíram de dentro do cavalo, abriram os portões da cidade de Troia e atacaram o inimigo.
Essa estratégia de ataque, chamada de “Cavalo de Troia” na mitologia grega, tem sido alvo de comparação de um tipo de terapia utilizada na medicina de precisão, principalmente na oncologia: o conjugado de anticorpo-medicamento, também conhecido como “ADC” (antibody-drug conjugate, em inglês), que tem ganhado destaque na comunidade científica e médica globalmente.
O mecanismo de ação dos ADCs consiste, basicamente, na ligação de um anticorpo – responsável por atuar contra agentes nocivos ao organismo – a um quimioterápico que, quando administrado, ataca diretamente as células tumorais, melhorando, assim, a eficácia do tratamento e reduzindo a exposição do organismo à toxicidade. Essa é uma vantagem significativa desta classe de medicamentos, que pode contribuir para a qualidade de vida do paciente durante o tratamento, uma vez que o medicamente é liberado dentro das células cancerígenas, poupando as células saudáveis e minimizando efeitos colaterais comuns em outras terapias, como náuseas e vômitos.
Os avanços são animadores em um cenário local e global cada vez mais desafiador: para 2040, estima-se a ocorrência de cerca de 30,2 milhões de novos casos de câncer no mundo¹; no Brasil, as estimativas para o mesmo ano são de 995 mil novos casos². Além disso, o câncer segue sendo uma das principais causas de morte globalmente, sendo responsável pela morte de 10 milhões de pessoas em 2018³.
Apesar de a medicina de precisão ser uma forte aliada no combate à doença, para revertermos essa situação, ainda é fundamental que invistamos também no diagnóstico precoce e na prevenção para que possamos administrar o tratamento necessário com eficiência o quanto antes. Estudos apontam que, nos estágios iniciais da doença, alguns ADCs se mostraram capazes de reduzir em 50% o risco de reincidência ou morte, e, em casos de câncer metastático – quando a doença já atingiu outras partes do corpo -, este tipo de droga demonstrou melhorar a sobrevida dos pacientes. Tudo isso significa que estamos no caminho certo para promover uma transformação valiosa na vida das pessoas.
De certo, ainda temos uma longa estrada a percorrer, mas, com este “Cavalo de Troia” da medicina, ampliamos nossas alternativas de ataque nesta batalha e nos munimos de mais esperança para resolvermos os desafios da oncologia e promovermos uma vida mais saudável e longeva para os pacientes. A estratégia é complexa, mas, com a união da comunidade médico-científica, governos, entidades do setor e sociedade, podemos avançar cada vez mais nas descobertas e na democratização da saúde, por um futuro em que o câncer seja tratado de forma individualizada e personalizada, como deve ser.
*Clarissa Baldotto é presidente do Grupo Brasileiro de Oncologia Torácica (GBOT) e diretora da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).