Pra não dizer que não falei das próteses – parte 2
24/04/2015 - por SANDRO SCÁRDUA

Esse segundo post que trata do mesmo tema, agora converge para a figura do gestor clínico enquanto agente ativo no tratamento das inadequações antes citadas, listando suas dificuldades e oportunidades de lidar com essa situação da forma mais adequada.

1° post  – Pra não dizer que não falei das próteses – Parte 1

Partindo do pressuposto de que o mesmo seja uma pessoa isenta e eivada de bons propósitos, de uma forma geral ele muito pouco poderá mudar um cenário que sempre existiu. Apesar de saber da existência das relações indevidas entre alguns de seus profissionais em troca de contrapartidas na utilização de bens e serviços oferecidos por fabricantes ou representantes de algumas marcas (para a indicação do uso de materiais/drogas ou realização de determinados procedimentos), diversos fatores o inibem de agir dentro do que seria esperado levando-se em conta sua posição. Eis alguns:

  • O acesso à rede de relacionamentos que coloca frente a frente profissionais do Corpo Clínico e aqueles que oferecem parcerias dessa natureza é sigilosa, meticulosamente cuidadosa e seletiva com seus integrantes; e deixa poucos rastros;
  • No caso de confrontação, profissionais tendem a defender seus pontos de vista baseados em argumentações técnicas de teor duvidoso, mas que, infelizmente, dentro de nosso meio, podem ser aceitas como verdadeiras;
  • Há um forte elemento político nesse cenário. Profissionais de renome são frequentemente os maiores beneficiários desse tipo de associação condenável, e, a despeito de indícios claros de irregularidades, são pessoas que gozam de boa reputação técnica e pessoal perante o corpo diretivo ou de acionistas da organização à qual presta serviços. Não se mexe com amigos do rei;
  • No modelo brasileiro de remuneração por serviços médico-hospitalares, o chamado “fee for service”, a organização que presta serviços tende a tirar o máximo de vantagem financeira sobre a fonte pagadora, através da cobrança a mais maximizada possível de insumos e taxas, em detrimento de valores gerados por honorários e serviços, estes últimos reconhecidamente defasados e iníquos frente às necessidades de sustentabilidade do negócio. Disso resulta que quanto maior for o valor de um determinado insumo utilizado, atraente quanto às margens de negociação, e quanto maior for a taxa de utilização desse mesmo insumo, tanto melhor para quem presta o serviço, mesmo que no processo haja a intermediação de um terceiro (no caso o médico), que leva a título de compensação incentivos tão generosos quanto discutíveis;
  • Não há como um representante máximo do Corpo Clínico de um hospital não gerar um constrangimento grande o bastante para que pessoas, não necessariamente médicos, saiam de sua zona de conforto para construir, de forma explícita ou não, as condições para que o mesmo não se mantenha nessa função por muito tempo. O próprio gestor clínico, médico que é, pode não querer esse tipo de enfrentamento para não sair da sua própria zona de conforto (e assim age um contingente enorme de gestores);
  • Setores de auditoria, que poderiam argumentar ou contestar esse ou aquele procedimento ou comportamento suspeito, não têm força política suficientemente relevante para se fazerem ouvir. Não bastasse isso, auditores médicos em quantidade suficiente, com capacitação técnica para embasar seus argumentos, reconhecimento entre seus pares e sentido de isenção são objetos muito raros. Na maioria das vezes, as auditorias locais e em tempo real, que seriam as ideais, são feitas por enfermeiras, muitas delas experientes e capacitadas, que, mesmo percebendo uma oportunidade de questionamento de uma indicação médica, já sabendo do pouco valor dado aos seus pareceres, acabam por se calar. Essa realidade também vale para empresas de resseguros;
  • Por mais paradoxal que seja, as próprias fontes pagadoras assumem um estranho papel de tolerância, permitindo que práticas abusivas dessa natureza sejam levadas a efeito dentro do ambiente hospitalar de seus prestadores credenciados, por entenderem se tratar de externalidades que fazem parte do negócio saúde. Afinal, a sobrevivência do pagador, principalmente planos de saúde, vai depender de um prestador que tenha credibilidade e outros atributos encontrados justamente aonde se multiplicam essas ações. Se paga conscientemente esse preço para que seu próprio negócio se mantenha;
  • A pouca probabilidade de se provar uma eventual denúncia dessa natureza, ou um dano ao paciente, à organização ou à fonte pagadora, torna a tarefa do nosso pobre gestor ainda mais complicada. E o médico não tem poder de polícia. Ainda que o tivesse e fosse bem sucedido na montagem de uma peça documental que trouxesse luz a essa questão em sua organização, resta ainda a certeza de que sua reputação e carreira possivelmente seriam reduzidas em suas expectativas, se não for antes defenestrado da sua função. Na seqüência, muito dificilmente esse indivíduo procurará um órgão de justiça competente, conselho de classe ou a própria polícia, pois pesa sobre seus ombros toda a responsabilidade que uma publicidade negativa iria trazer para todos os envolvidos. Daí resulta que dentre se preservar e garantir seu status funcional, fazendo “vista grossa” a tomar as atitudes certas, poucos duvidam acerca de qual caminho será tomado;
  • Quando da recusa por parte dos setores de auditora ou pelas fontes pagadoras (em boa parte das vezes respaldadas por ampla defesa técnica) em fornecer rigorosamente o que é solicitado pelo profissional (em detrimento de alternativas menos custosas ou abordagens menos invasivas) quando em conluio com o fabricante da marca almejada ou seu representante, o Judiciário brasileiro é frequentemente acionado e, grosso modo, dá uma relevante contribuição ao terreno das inadequações, na medida em que, por não se julgar absolutamente respaldado tecnicamente e competente acerca das demandas que lhes chega às mãos, dá provimento a decisões que favorecem uma cadeia harmoniosamente orquestrada na produção de argumentos que visam ludibriar o magistrado em favor de pacientes, quando na verdade os grandes beneficiários são todos os que estão ao redor destes. Risco de vida, grave dano físico ou moral, inadequações materiais para as demandas requeridas (e, por conseguinte, a necessidade de substitutos “mais adequados”) são alguns elementos que compõem as peças jurídicas preparadas por advogados muitas vezes especializados nessas questões, fomentando mais ainda o que se convencionou chamar de “indústria das liminares”.

Mais uma vez cabe ressaltar que estamos aqui tecendo comentários acerca daquilo que é mais chamativo, ou seja, a questão das próteses. Mas é bom deixar claro que a despeito de um contingente considerável de profissionais que optam por se utilizar de meios, no mínimo discutíveis, para auferir algum benefício, e a despeito da enorme dificuldade de se lidar com o problema de forma transparente, todos sabem que os mesmos representam uma parcela significativamente menor que os médicos em geral. Parece incrível, mas mesmo nos tempos de hoje a maioria respeita seu juramento hipocrático.

Entretanto, seria ingenuidade ignorar o fato de que no ambiente das organizações de saúde, principalmente hospitais de alta complexidade, todos os dias observamos fenômenos repetitivos que se assemelham a isso no que tange à forma pouco profissional com que nós, médicos, tratamos nossos pacientes sob vários aspectos.

Em função de inúmeros fatores (dentre os quais destaco a forte influência da formação acadêmica inadequada para as nossas características enquanto sistema de saúde, e que não atenta para a postura desumanizada, obstinada e fortemente influenciável pelas inovações tecnológicas de nossos profissionais), pequenas fortunas são gastas em decorrência de exames dispendiosos mal indicados ou excessivamente utilizados, drogas de última geração que rapidamente são incorporadas, muitas vezes de forma acrítica (os antibióticos são os melhores exemplos), procedimentos e cirurgias que mesmo que indicadas com boa fé são discutíveis, tempo de permanência intra-hospitalar excessivamente prolongado por falta de resolutividade ou insegurança no momento de se decidir pela alta hospitalar, e práticas altamente discutíveis que se encaixam no conceito de terapia fútil. Tais fenômenos, dentre outros, fazem os volumes de recursos envolvidos nos escândalos revelados pela mídia parecerem risíveis. É uma constatação objetiva, amparada por literatura internacional, repetida aos montes em encontros e congressos, e que raramente são quantificadas.

As ferramentas utilizadas como tentativas de ajuste de custo-benefício ou custo-efetividade soam estranhas à maioria dos gestores, que têm a obrigação de zelar pela boa assistência baseada em parâmetros mais superficiais e imediatistas. E não poderia ser de outra forma, uma vez que o volume de trabalho desses profissionais é incompatível com um olhar mais atento a essa questão.

Reforçando o que foi dito no início, quero chamar a atenção do gestor clínico. A sua responsabilidade é muito maior do que provavelmente ele supõe. E, para aqueles que têm como ponto de partida a virtude da boa fé, infelizmente esse não é um atributo que será aproveitado como argumento algum caso algum cheiro ruim aparecer nos corredores de seu hospital. Como Gestor Clínico, sua responsabilidade é solidária com as ilicitudes cometidas pelos seus pares, teoricamente sob seu comando e responsabilidade, perante tribunais de justiça ou tribunais éticos.

Não tenho uma chave para resolver essa questão. Se o tivesse, certamente estaria rico demais vendendo a solução para os incontáveis interessados. Apenas tenho algumas dicas úteis e exequíveis, que servem para qualquer organização, independente da sua complexidade ou natureza de seus serviços. Para começar,

– siga estritamente, ao pé da letra, as recomendações do Conselho Federal de Medicina acerca da legislação ética que cerca a composição do Corpo Clínico e das funções do Diretor Médico ou Diretor Clínico. Não parece, mas essas orientações têm peso de lei e têm amparo jurisprudencial caso a esfera da análise ultrapasse o âmbito ético e seja tratado no terreno da justiça comum;

– em seguida, promova eventos na sua organização que tratem do assunto, procurando sempre convidar membros do setor judiciário e do Conselho Regional de Medicina. Às vezes, isso é mais que suficiente para evitar que alguém se sinta impelido a dar um passo numa direção contrária ao desejado, e inibe sobremaneira quem já o faz;

– insista perante a alta direção quanto à necessidade de criação de um setor de ouvidoria;

– promova eleições para Comissão de Ética Médica e estimule a participação de pessoas sobre as quais recaem suspeitas de favorecimento ilícito;

– acompanhe de perto, junto ao setor de compras e autorizações, o movimento que envolve a solicitação e compra de insumos de alto custo, assim como suas justificativas técnicas. O bom profissional se sentirá prestigiado pela atenção dada de seu diretor. O mau se sentirá inibido;

– se ainda assim perceber que o ambiente não apresentou nenhuma mudança acerca de possíveis irregularidades, elabore, juntamente com o setor jurídico da organização, algum documento tal como um TAC – Termos de Ajuste de Conduta, assinado pelas lideranças dos diversos serviços ou especialidades, e o registre junto ao Conselho Regional de Medicina local, em que se deixe claro e explícito o comprometimento de todos os listados em zelar pela transparência de suas ações e tantos quantos itens forem necessários ser explicitados (e assinados em conjunto) para o bom andamento das ações dentro de seu hospital. Essa será uma arma poderosa para protegê-lo para o caso de ser acusado de corresponsabilidade em alguma peça jurídica ou ética.

Quanto às perdas diárias que ocorrem à sua revelia, não há muito o que fazer a não ser estruturar suas ferramentas de qualidade, que sua organização e talvez você mesmo, gestor, disse que tinha à disposição e que funcionavam quando do processo de Acreditação (que sua organização deu um duro danado para conseguir). Elaborar documentos, diretrizes, protocolos e comissões são etapas recomendadas pelos especialistas para se atingir padrões de qualidade. O difícil mesmo é fazê-las funcionar, mapear as oportunidades de melhora, gerar indicadores, levantar montanhas de dados e, finalmente, tomar decisões que precisam ser tomadas dentro do conceito de custo-efetividade. Simples, não é?

O país está virando de cabeça para baixo e décadas de coisas erradas estão ganhando notoriedade. Se algo de ruim acontecer sob sua gestão, pouco importa dizer que não sabia ou que não tem nada a ver com isso.

Como dizia Vandré, quem sabe faz a hora, não espera acontecer.





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