Entrou em vigor nos Estados Unidos, em outubro de 2022, o 21st Century Cures Act, uma lei de âmbito federal que dispõe sobre a obrigação de as instituições de saúde fornecerem aos pacientes o acesso irrestrito a seus registros médicos, em formato digital. Isso permitirá que o consumidor mantenha os dados sob seu domínio e os compartilhe com quem desejar, possibilitando o controle de suas informações pessoais e melhor gestão de seu histórico de saúde.
No Brasil, a maior parte das informações do paciente são registradas no prontuário médico – em formato físico ou digital – , um documento que, na descrição de Genival de França, é entendido não apenas como “registro da anamnese do paciente, mas todo acervo documental padronizado, organizado e conciso, referente ao registro dos cuidados médicos prestados, assim como aos documentos pertinentes a essa assistência” .
Por lei, o prontuário pertence ao paciente, mas o médico ou instituição de saúde têm o dever de guarda. No entanto, é relativamente raro que o usuário solicite a cópia do documento, deixando-o arquivado no estabelecimento em que a assistência foi prestada. Ao longo da vida do indivíduo, estas informações, segregadas entre consultórios e instituições de saúde, costumam ser esquecidas, levando frequentemente à perda de dados relevantes ou à repetição de procedimentos anteriormente realizados. Esta situação gera desperdício de recursos valiosos e pode representar inclusive risco, no caso da recorrência de exames invasivos, radioativos ou daqueles que exigem preparos complexos.
Neste contexto, e atentos ao exemplo dos norte-americanos, a preocupação com dados em saúde e a implementação da interoperabilidade já é um tema relevante e vem recebendo consideráveis investimentos por parte de hospitais, operadoras, laboratórios e outras instituições que atuam neste mercado. É considerado um avanço necessário para otimizar processos, reduzir custos e melhorar o atendimento. Entretanto, os desafios ainda são enormes e, dentre eles, destacamos dois: a conformidade aos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD e a falta de adequação, objetividade e clareza no preenchimento dos documentos médicos.
A LGPD, em vigor desde 2020, representou um marco histórico na regulamentação sobre o tratamento de dados pessoais no Brasil e deve ser cumprida por instituições públicas e privadas. Apesar de a lei promover a segurança das informações com o objetivo de preservar valores como a autodeterminação informativa e inviolabilidade da privacidade, ela trouxe grandes desafios, especialmente às organizações que dependem de dados pessoais para desenvolver sua atividade.
As adaptações às exigências da referida norma têm sido realizadas com dispêndio de muitos recursos para as instituições, que precisam investir em tecnologia e treinamento de seus colaboradores. Na medida em que se exigem rígidos limites de acesso aos dados considerados pessoais ou sensíveis – é o caso das informações de saúde – impacta-se a efetivação da interoperabilidade dos sistemas.
Por outro lado, nos termos do artigo 18, da LGPD, os agentes que tratam dados já devem estar preparados para garantir aos titulares das informações o livre acesso às mesmas. Por mais que ainda não exista a obrigação de entregar ao usuário seus dados no momento da prestação do serviço, eles devem ser disponibilizados caso sejam solicitados.
Portanto, o direito ao acesso à informação pessoal já é realidade e, considerando também que vultuosas punições poderão ser impostas aos agentes de tratamento de dados que não cumprirem as determinações legais, passa a ser ainda mais relevante a análise quanto à qualidade da informação que será entregue ao consumidor que, no caso da saúde, é o paciente. A elaboração do prontuário médico, que usualmente é negligenciada, passa a merecer maior atenção.
O Código de Ética Médica descreve, especialmente nos artigos 85, 87, 88, 89 e 90 as obrigações do profissional em relação ao prontuário médico, dentre elas estão: o sigilo, a legibilidade, a forma de preenchimento com a indicação de dados imprescindíveis, a guarda, a disponibilização ao paciente ou seu representante legal e as exceções em relação à liberação do mesmo – casos de requisição judicial ou do próprio Conselho Regional. Nos termos do artigo 6º da Lei 13.787/18, o prazo mínimo de manutenção dos registros do paciente, sejam eles físicos ou digitais, é de vinte anos, a contar do último registro. Logo, o prontuário em que conste um apontamento realizado em 2023 poderá ser requerido até 2043, sendo o período prorrogado, em casos excepcionais.
A despeito de sua importância, é raro que se elabore um prontuário seguindo todos os preceitos exigidos. As consequências diretas para o médico podem ser de ordem administrativa, ética, legal ou criminal (em casos de adulteração do documento). É cada vez mais comum a condenação ética perante o Conselho Regional ou, ainda mais grave, a impossibilidade de se defender judicialmente, caso o médico venha a ser demandado por algum resultado atípico ou indesejado. Isto decorre do fato de o prontuário se consubstanciar no mais importante meio de prova das partes. De acordo com recentes decisões dos Tribunais, na ausência deste documento o juiz pode presumir a culpa do médico – por ser ele o responsável por sua guarda. Há, ainda, condenações de profissionais pela simples ausência do prontuário ou quando ele é preenchido indevidamente, repercutindo em obrigação de indenizar o paciente por dano.
É uma situação muito delicada, em que o bom o profissional pode se sentir injustiçado, ao considerar que presta uma boa assistência, ainda que não cumpra tal “burocracia”. Em contrapartida, se assim não fosse, o profissional displicente ou desonesto poderia se beneficiar da falta de documentação – eventualmente proposital – para alegar sua inocência por falta de provas, em relação ao erro de conduta investigada.
Apesar de ser um fenômeno crescente, a judicialização é uma exceção na relação médico-paciente. O grande peso que se confere ao correto preenchimento do prontuário médico decorre principalmente da importância que se reveste tal documento para o paciente, por permitir a este ou mesmo a outros profissionais, que se conheça e se possibilite o compartilhamento de suas condições de saúde pretéritas, permitindo o acompanhamento da evolução de uma doença e propiciando meios para se atingir um diagnóstico ou prognóstico de novas enfermidades.
Com as novas tecnologias existentes, o avanço exponencial nos estudos da medicina preditiva e o uso de inteligência artificial e machine learning como instrumentos auxiliares, uma informação de qualidade se transforma num grande ativo e pode fornecer subsídios para intervenções terapêuticas preventivas e o consequente e aumento de expectativa de vida. O melhor cuidado em saúde dependerá cada vez mais da adequada informação pessoal que o indivíduo possui e da qual poderá fazer o devido e tempestivo uso.
Diante desta nova realidade, podemos antever que não tardará para ser instituído um Cure Act brasileiro, obrigando o prestador de serviço a fornecer ao paciente suas informações de saúde em formato digital. Certamente, será cada vez maior a responsabilidade do médico e das instituições de saúde na elaboração e manutenção destes dados, e eventuais falhas poderão gerar uma direta responsabilização, repercutindo em diversos tipos de punições, em diferentes esferas.
Em suma, devemos considerar urgente e imprescindível a adequada formação técnica dos profissionais da saúde para o correto preenchimento e manutenção dos documentos do paciente, bem como o acesso a ferramentas idôneas que permitam ao profissional da saúde desempenhar seu ofício com maior tranquilidade e segurança. Sobretudo, é necessário ampliar a consciência do médico em relação ao preenchimento do prontuário, de maneira que este reflita todo cuidado e atenção dispensados durante a assistência.
São crescentes os desafios do médico na contemporaneidade e a necessidade de atualização profissional extrapola o campo da saúde, abrangendo a compreensão e utilização de novas e complexas tecnologias e o atendimento a uma infinidade de disposições legais. Contudo, não se pode cometer o equívoco de se perder de vista o propósito primordial da Medicina, que é o cuidado ao ser humano, bem consolidados nos sabidos valores hipocráticos. Como preconizou Albert Einstein, “o espírito humano precisa prevalecer sobre a tecnologia”.