Os genéricos como vemos frequentemente na farmácia são versões de medicamentos sintéticos. Ou seja, com eles, a partir de reações de química orgânica de cada elemento, tornando mais rápido criar “cópias” (os genéricos) em comparação com o processo seguido pelos medicamentos biológicos. Isso porque este último grupo envolve a manipulação de organismos vivos, como células de bactérias, usando biotecnologia. Nesse processo, é feita uma engenharia genética para conseguir fazer com que estes organismos vivos consigam, depois de passarem por um longo processo, atacar alvos específicos dentro do corpo — como um câncer, por exemplo. Os biossimilares replicam esse efeito dos medicamentos de referência, mas o trabalho com organismos vivos impede que réplicas exatas sejam feitas. No fim das contas, apesar de não ser idêntico ao medicamento original, o biossimilar tem de passar por estudos que comprovem que, no fim das contas, ele consegue cumprir o mesmo propósito do medicamento original.
Alguns exemplos são as insulinas, utilizadas no tratamento do diabetes, a alfaepoetina, para controle de anemia decorrente de insuficiência renal crônica, e anticorpos monoclonais, utilizados no tratamento de câncer e de sintomas pós-covid, por exemplo. Focando principalmente neste último grupo, dá para entender por que o mercado de biossimilares ainda pode crescer bastante. O Tocilizumabe, medicamento de referência usado para tratar artrite reumatóide e recentemente aprovado para tratamento da doença causada pelo coronavírus, pode ser encontrado a cerca de R$ 5 mil.
“Os medicamentos biológicos são o que há de mais moderno na indústria, hoje. Por meio deles, é possível curar hemofilia ou até mesmo câncer de pulmão, mesmo nos estágios mais avançados da doença. Com base nisso, o mercado de biossimilares deve crescer muito ao longo dos próximos anos. Hoje, esses medicamentos já representam metade de toda a receita financeira do mercado, um percentual que deve chegar a 80%. Não por quantidade, mas por valor, já que ainda são medicamentos muito mais caros”, diz Hahn.
Mais do que a eficácia dos produtos em si, há um outro ponto que torna esses remédios atrativos daqui para frente: a frequência de queda de patentes de moléculas utilizadas em medicamentos biológicos. Juntando os dois fatores, a Blau foi atrás de uma parceria para conseguir aproveitar o melhor que esse momento pode oferecer.
Chegando finalmente na história do comunicado ao mercado desta manhã, a empresa brasileira procurou uma fornecedora no mercado internacional que fosse capaz de auxiliá-la no desenvolvimento das células de organismos vivos, no processo de produção em si — o que pode ser traduzido como o processo de produção do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), sigla muito falada durante a pandemia para a produção de vacinas contra a covid-19. O leitor pode se lembrar de todas as discussões sobre o Brasil importar o tal IFA de laboratórios de fora, por meio de parcerias, para a produção das vacinas nos laboratórios de Bio-Manguinhos, por exemplo.
No caso da Blau, a situação é bem diferente dessa primeira referência que a memória pode trazer. Em vez de firmar uma parceria para apenas trazer ao Brasil uma tecnologia 100% feita fora do país, o contrato entre as empresas é de coprodução do IFA para produzir os medicamentos, ou seja, de construção da célula, de ‘cópia’ do medicamento de referência, em conjunto.
Um dos fatores críticos levados em consideração para escolher a Similis Bio foi, primeiro, o fato de ser uma unidade da JSR Life Sciences — referência em produção de biomedicamentos – criada exclusivamente para o desenvolvimento de biossimilares. Tendo isso em mente, a velocidade de produção e de testes conduzida por essa empresa pode auxiliar e muito a companhia brasileira. “O que nós levaríamos dois anos para testar, eles fazem em dois meses”, diz Hahn. Depois dessa etapa de produção do IFA, toda a responsabilidade para efetivamente produzir o medicamento passa a ser da Blau.
A parceria entre as empresas visa a produção de medicamentos (anticorpos monoclonais, especificamente) em três indicações: oncologia, inflamações em geral e hematologia. A empresa brasileira não vai divulgar mais especificações sobre os medicamentos de referência, ao menos por enquanto. A partir do momento em que os estudos clínicos forem iniciados, a empresa deve abrir mais informações sobre eles. Bom lembrar que a parceria não está limitada a esses medicamentos, mas pode ser estendida da forma que as companhias julgarem mais interessante. Além disso, a Blau tem o direito de preferência de desenvolvimento de novos produtos da unidade da empresa norte-americana.
Os quatro anticorpos foram escolhidos por estarem, também, entre as moléculas com o maior mercado endereçável do mundo, que, ao todo, é de US$ 42 bilhões, sendo R$ 4 bilhões no Brasil. Questionado a respeito do mercado que a Blau pode capturar no país, Hahn responde que, hoje, a Blau tem aproximadamente 27% do mercado endereçável em que atua. “A nossa participação tem caído porque o ramp-up de chegar com um produto maduro demora, e estamos produzindo novos produtos em uma velocidade maior. Em média, a gente tinha 30%”, diz o executivo.
Crescer com biossimilares no Brasil guarda outro desafio, dessa vez regulatório. Que, é claro, também carece de explicação. Hoje, as patentes de medicamentos no país não são ‘estacionárias’. O que quer dizer que, quando um laboratório ou grupo de cientistas desenvolve uma droga e faz a patente daquela molécula, dificilmente para de trabalhar nela. Pode deixá-la mais límpida, mais pura, incluir um processo a mais, ter menos impurezas, etc. A cada sequência de modificações, o grupo pode registrar uma nova patente sobre aquela mesma molécula, se enquadrando dentro do que as normas definem como “Patente de Segundo Uso”. No frigir dos ovos: com esse recurso, uma patente que duraria 20 anos passa a ter seu tempo estendido consideravelmente a partir das novas patentes de segundo uso que lhe são agregadas. Num exemplo: se um medicamento é patenteado para câncer de pulmão e, algum tempo depois, novos testes com uma versão dele para câncer de pele mostram que é eficaz, uma nova patente é feita para este tipo de câncer. E assim por diante.
Esse é um ponto de discussão. Em 2009, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) e a Anvisa divergiram a respeito do assunto. Na época, o coordenador de Propriedade Intelectual da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Luis Carlos Wanderley Lima, afirmou que patente de segundo uso era como patentear duas vezes o mesmo medicamento. Na visão do presidente do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), Jorge de Paula Costa Ávila, na época, afirmou que a decisão caberia ao Congresso Nacional. Hoje, um órgão público relevante para a construção desse debate é o Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI), que fica dentro do Ministério da Economia.
As discussões sobre o tema continuam à flor da pele. Em maio do ano passado, o STF proferiu uma decisão histórica, que baniu a figura da extensão de patentes, prevista no parágrafo primeiro do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial. Mas, os esforços por prorrogá-las não pararam por aí. Em artigo na Folha de S. Paulo, Telma Salles, presidente da PróGenéricos, e Arystóbulo Freitas, advogado especializado em propriedade intelectual, afirmam em artigo que decisões de primeira instância que confrontam a decisão do Supremo já começaram a surgir neste ano, atendendo à demanda de empresas que querem continuar usando esse dispositivo legal.
Toda essa explicação para dizer que a Blau Farmacêutica ressalta como uma estratégia importante ao longo dos próximos anos a exportação de medicamentos biossimilares, ainda que sejam produzidos no Brasil. A empresa hoje está presente em sete países da América do Sul (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai e recentemente Equador). Também já tem operação nos Estados Unidos, na América do Norte. Além disso, a empresa estrutura parcerias para a venda dos produtos na Malásia, Tailândia, Taiwan e Paquistão, regiões onde já vendeu ou ainda vende medicamentos biológicos.
“A gente tem uma boa oportunidade para colocar esses produtos fora do Brasil. Também participamos anualmente de feiras, como a que vai acontecer agora na Alemanha [CPHI Frankfurt] que nos dá a possibilidade de acesso a parceiros em diferentes regiões”, diz Hahn.
A ideia é que os parceiros comprem os medicamentos já acabados, uma vez que a farmacêutica brasileira não tem a intenção de vender o IFA a eles. O processo de exportação, de modo geral, acaba sendo mais acelerado porque a lei de patentes desses países é diferente da brasileira, o que colabora positivamente para o go-to-market.
Ainda assim, Hahn destaca a importância do desenvolvimento de medicamentos biológicos para o mercado brasileiro, principalmente olhando para o SUS. A ideia, segundo o executivo, é trazer a partir da iniciativa da Blau, medicamentos biológicos e torná-los mais baratos, com qualidade, podendo, inclusive, ampliar o acesso à saúde.
Mesmo com o potencial de mercado que se apresenta à frente, com o volume significativo de queda de patente à vista, Marcelo Hahn acredita que o país ainda terá de evoluir muito para conseguir aproveitá-lo completamente. Um dos desafios citados pelo executivo é a necessidade de uma reformulação da relação entre indústrias e instituições de ensino, por exemplo.
“É muito complexo a Blau ceder uma tecnologia para ser trabalhada lá. Como eu posso ceder uma célula-mãe, um ativo super valioso no nosso trabalho para uma pessoa que, amanhã, pode vir a trabalhar em algum concorrente. Falta evoluir isso. Acho que laboratórios como os que estão montados hoje são bons para qualificar pessoas, mas para desenvolvê-la de verdade, seria necessário uma aproximação com acadêmicos capazes de desenvolver clones de alguma célula-mãe, mas ainda assim isso é difícil, por ser uma coisa guardada a sete chaves aqui dentro, por exemplo”, diz o executivo.
Um outro ponto que conta a favor da Blau é o fato de a farmacêutica ter uma fábrica de produção de biossimilares já aprovada pela Anvisa. Ao todo, a nova instalação demandou um investimento de cerca de R$ 200 milhões. Por fim, a própria expertise da companhia no setor é ressaltada. A Blau investe em biotecnologia há mais de 20 anos e é considerada pioneira no país a investir nisso.
O acordo anunciado nesta terça-feira é mais um passo para a Blau em direção à verticalização de produção usando biotecnologia no Brasil. Para a empresa, é a única maneira de aproveitar o melhor que o desenvolvimento de medicamentos ‘do futuro’ pode oferecer.