Com os dedos, o chef francês Michel Bras pega um pedaço de polpa de bacuri e leva à boca. Em seguida, com uma colher, experimenta caldo de tucupi. "O que é isto? O que você pode fazer com isto?", pergunta Bras para Alex Atala. Diante de uma mesa cheia de produtos nacionais, o chef brasileiro oferece novos ingredientes. "Isto é uma viagem, há muita coisa para descobrir", diz Bras. O encontro, no domingo, durante um workshop na Vila Olímpia, em São Paulo, reuniu estrelas da gastronomia internacional, cozinheiros e pequenos produtores brasileiros.
O evento teve a participação de cerca de 120 pessoas e, além de Atala e Bras, estavam lá Ferran Adrià e Joan Roca, da Espanha, Gastón Acurio, do Peru, e Yukio Hattori, do Japão. Todos pertencem ao Conselho Internacional do Basque Culinary Center, o G11, que se reúne a cada ano em algum país para discutir questões globais ligadas à gastronomia. A escola é referência internacional como centro de pesquisa, formação e inovação.
O workshop tem o intuito de ser um momento de descontração e reflexão que precede a reunião dos chefs. É a ocasião em que um produtor de ostras de Santa Catarina e um estudioso de plantas alimentícias não convencionais podem dialogar com chefs celebrados internacionalmente. Depois há um almoço com mesas coletivas, sem lugar marcado, nas quais ocorrem conversas espontâneas. "Vai ver somos parceiros. Será que você é meu cliente?", pergunta um produtor de palmito para Marcelo Bastos, dono do restaurante Jiquitaia.
O cardápio do almoço, preparado por Janaina e Jefferson Rueda com a intenção de exibir uma cozinha brasileira de raiz, tinha um leitão de 70 kg assado e desossado na ocasião, tutu de feijão, farofa, saladas e doces típicos. Arrancou elogios até de Adrià, que comia um pedaço da pururuca com as mãos, em pé junto à mesa de corte. "Em geral, nos eventos de gastronomia se come muito mal. Este almoço está entre as melhores coisas que comi na vida", disse.
Além da confraternização, o propósito da conversa era levar ao Basque Culinary Center ideias novas capazes de enriquecer o diálogo entre os chefs. O debate tratou de biodiversidade e cozinha, do alimento puro e processado e da necessidade de valorizar o pequeno produtor. Atala propôs uma revisão da palavra sustentabilidade. "A sustentabilidade virou um marketing. As pessoas e empresas usam essa palavra para falar de coisas que fazem com o mesmo prazer com que vou ao dentista."
Ferran Adrià, com o dom da oratória, roubou a cena. Não satisfeito com a palavra, partiu para encenações: tirou o iPhone do bolso para explicar a diferença entre técnica e tecnologia, fez Atala cortar um presunto imaginário numa encenação de mímica e, depois, disse que aplausos não faziam sentido, já que aquilo era uma troca de vivências e não um concerto.
Juan Roca, do restaurante catalão El Celler de Can Roca, insistiu na responsabilidade que os cozinheiros têm de potencializar o trabalho de pequenos produtores para poder melhorar a estrutura dos mesmos. "A atual crise do mundo é resultado de excessos. Somos prisioneiros do conceito de que precisamos crescer, crescer e crescer. Temos que reencontrar o equilíbrio. Estamos assistindo à revolução do produto. A próxima será uma revolução sensível e humanista, na qual o dono do restaurante deve ver a equipe contente, que recebe bem por aquilo que faz."
Sem qualquer discurso pronto, agricultores, botânicos e chefs contrapuseram sua realidade. O catarinense Ivan Taffarel, produtor de ostras, moluscos e algas, comentou que a relação geralmente não é direta com o chef e que existe toda uma linha de transportes, complicadíssima. Já Edinho Engel, do restaurante Manacá, de Camburi (SP), lembrou que no Brasil, infelizmente, ainda existe insegurança dos restaurantes em declarar a procedência dos produtos, com medo de que a concorrência vá buscá-los também.
Ao relatar a recente evolução gastronômica peruana, o chef e empresário Gastón Acurio contou que em seu país foi criada uma rede de chefs e produtores e que o pequeno agricultor, sempre visto como um cidadão de segunda categoria, passou a ser respeitado. "O cozinheiro é um soldado do agricultor na cidade e nosso sonho é que um dia os dois tenham o mesmo reconhecimento."
Como nem tudo são aplausos, nos bastidores houve quem criticasse o tom elitista do debate. "Vamos falar o que não estão falando? Vamos falar dos produtos ruins que a gente usa e olhar um pouco além desse quintal de chefinhos?", propôs uma chef ao colega ao lado. "Esse discurso é déjà vu demais. Fala-se muito e faz-se pouco." Mas ela mesma decidiu ficar em silêncio.
Anteontem, os chefs resumiram algumas conclusões do encontro para um grande público no Centro Universitário Senac, em evento da Semana Mesa São Paulo. A atração foi o japonês Yukio Hattori, que depois de falar de amor e alimento na mesa familiar, conclamou a plateia a dar as mãos.
Fora o fomento ao pequeno produtor, uma das conclusões do encontro foi a necessidade de investir na educação alimentar de forma eficiente. Para obter recursos para isso, Bras exortou parcerias com empresas de "agrobusiness" interessadas em investir na formação das novas gerações. "Nunca a juventude se alimentou tão mal", disse o francês, um dos chefs mais respeitados do mundo, que considera que cozinhar é "um apostolado" e assim defende sua "parte do paraíso". Mas como Atala ressaltou, "os cozinheiros não vão salvar o mundo".
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