Os avanços tecnológicos proporcionaram uma revolução na medicina. Mas se o que vivenciamos já mudou tantos paradigmas, o que virá pela frente será ainda mais transformador. Há algumas semanas, o Congresso Europeu de Cardiologia, realizado em Barcelona, na Espanha, apontou algumas dessas direções para o diagnóstico e tratamento das doenças cardiovasculares.
Por exemplo, inúmeros dispositivos móveis (mobiles, wearables e biossensores) comercialmente disponíveis permitem monitorar dados relevantes sobre a saúde dos indivíduos, em tempo real e contínuo. No congresso, pesquisadores evidenciaram como a introdução desses equipamentos pode melhorar a saúde cardiovascular. Um estudo demonstrou que a auto monitorização dos batimentos cardíacos, por meio de um aplicativo de smartphone, durante dois minutos por 14 dias, aumentou as chances de detectar arritmias cardíacas.
Os biossensores já são conhecidos pelos indivíduos com diabetes mellitus e permitem o acompanhamento dos níveis de glicose por um sensor a qualquer momento, sem necessidade de coleta de sangue. Outros avanços nessa área incluem sensores inseridos em pulseiras digitais para monitorar níveis de oxigenação do sangue, identificando pessoas com apneia do sono ou mesmo situações de sonolência ao dirigir. Monitores de pressão arterial digital já estão configurados para envio das medidas por bluetooth para profissionais de saúde em cenários de risco.
Enfim, parecem ser infinitas as oportunidades de aplicar esses dispositivos em prol de um melhor controle e acompanhamento da saúde de cada indivíduo. O desafio científico é, ainda, apontar como e quando elas devem ser utilizadas para melhorar a qualidade de vida. As evidências que já demonstraram resultados com este alcance têm, como ponto comum, o uso das técnicas de inteligência artificial para que os milhões de dados gerados possam ser analisados agilmente e direcionar ações assertivas.
O evento também teve como destaque as técnicas de inteligência artificial. Através de algoritmos pré-definidos e auto aprendizado de máquinas, é possível interpretar exames cardiológicos com maior acurácia. O exame mais tradicional da área, o eletrocardiograma, pode ter um resultado em segundos com altíssima precisão quando comparado com o mais experiente cardiologista. O uso dessas tecnologias também já é uma realidade em diversos outros métodos de imagem, como cintilografia miocárdica e angiotomografia, sendo aplicado cada vez mais para garantir resultados confiáveis na prática clínica.
Técnicas computacionais avançadas têm permitido a análise de bancos de dados com milhares de indivíduos, prevendo quais são aqueles de maior risco de ter um infarto ou morte cardíaca nos próximos anos. Muitos desses algoritmos incluem fatores de risco tradicionais — tabagismo, hipertensão arterial, diabetes — associados à análise genética dos indivíduos. Através da análise de múltiplos genes, é possível aumentar a capacidade preditiva dos modelos de risco, algo que há pouco tempo não era factível. Essas informações podem ter implicação direta em nosso dia a dia, na medida em que a prevenção é baseada no risco cardiovascular estimado para cada indivíduo.
Mas talvez um dos aspectos mais disruptivos da saúde digital foi a inclusão do metaverso no cuidado ao paciente cardiológico. Um conceito que não é novo, no qual as gerações mais jovens já estão ambientadas, em jogos interativos e plataformas onde um personagem (avatar) é criado pelos participantes para conviver em um espaço virtual pré-definido. Agora, vamos imaginar um cenário que pode ser a interação entre o médico e um paciente na vida real. Esse conceito inovador seria a aplicação do metaverso na medicina.
Com a pandemia, a interação médico-paciente foi muito ampliada para o uso de recursos digitais com as teleconsultas. No cenário pós-pandemia, existe uma expectativa de que esses modelos serão incorporados e fortalecidos. Mas como o metaverso se encaixa nisso? Vários estudos científicos têm sugerido que o uso dos espaços virtuais pode auxiliar na aproximação médico-paciente, integrando aspectos da telemedicina com outras funcionalidades tridimensionais. Nesse ambiente, a interação pode ocorrer com uma equipe de vários especialistas, trazendo resultados de exames e perspectivas terapêuticas baseadas em dados gerados por inteligência artificial.
Além desses aspectos objetivos, a construção de um avatar para cada indivíduo pode trazer informações relevantes para o reconhecimento individual, desde a construção do seu físico como etnia e gênero, dados de dor ou angústia, com uma capacidade de expressão além da presencial. As relações de metaverso são, também, ampliadas para visão de hospitais digitais, onde os profissionais de saúde podem interagir com os pacientes em seus domicílios e oferecem o melhor cuidado para sua condição, sem que eles precisem sair de casa. Nestes ambientes, o paciente coleta seus sinais vitais por wearables, envia os dados e recebe orientações de como proceder pelos profissionais de saúde, podendo ser monitorado continuamente.
Embora se tenha avançado muito nessa área, ainda transitamos num momento entre fantasia e realidade. Existem desafios a serem superados, como acesso à internet de alta performance, aplicativos úteis, interoperabilidade de sistemas, familiaridade digital e aspectos culturais e sociais. Um futuro que pode ser visto como utópico e futurista, como foi a cirurgia robótica e o coração artificial. Mas é fato que as tecnologias estão evoluindo — e precisamos repensar como usá-las para ampliar acesso e equidade na medicina, assegurar sustentabilidade e, especialmente, oferecer um melhor cuidado aos pacientes.
*Carisi Anne Polanczyk é Chefe do Serviço de Cardiologia, Cirurgia Cardíaca e Vascular do Hospital Moinhos de Vento