Saúde na era tech
19/05/2022

Lá no começo da pandemia de covid-19, em 2020, muita gente passou a dizer que sairíamos melhores dessa. Talvez não tenha sido bem assim, mas um uso maior da tecnologia no acesso à saúde foi um lado bastante positivo.

Diante do exílio que o coronavírus impôs ao mundo, grande parte das pessoas teve de se adaptar às telas dos computadores e smartphones para acessar todo tipo de serviços, inclusive os médicos. Nos piores dias da covid-19, ter um profissional da saúde ao alcance de um clique foi providencial.

Estava quebrada uma barreira junto aos sistemas de saúde que, dada a sua complexa natureza, vinham resistindo ao avanço tecnológico já estabelecido em várias esferas da sociedade. Com propostas de melhoramento e automatização de serviços e processos, as empresas que se dedicam a esse setor —as chamadas healthtechs— têm alavancado inovações por meio da telemedicina, inteligência artificial, gestão, relacionamento com pacientes, farmacêutica, IoT (internet das coisas), entre outras, além de planos de saúde ditos mais econômicos que podem resultar na ampliação do acesso à saúde.

Dados do hub de inovação Distrito revelam que, no Brasil, o número de healthtechs saltou de 248, em 2018, para 542 em 2020. Assim, não surpreende que especialistas em finanças estejam de olho na nova onda de investimentos voltados para elas, e que gigantes como Apple, Amazon e Meta estejam apostando milhões em um setor cujos gastos representam 10% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial.

Mas será mesmo que as healthtechs podem democratizar o acesso à saúde privada sem que as famílias tenham que pagar uma fortuna? Quais desafios essas empresas ainda têm pela frente para conseguir isso por aqui?

 

Startup, mas pode me chamar de healthtech

Esses conceitos podem parecer complicados, mas é fácil entendê-los.

  • Healthtech é a união das palavras health (saúde) e technology (tecnologia). Juntas, elas são usadas para definir empresas que trabalham com soluções tecnológicas para a saúde.
  • Startup é toda empresa de base tecnológica que busca fornecer soluções inovadoras que possam ser repetidas e escaladas (têm replicação no mercado global). Quando se volta para o cenário da saúde, fornecendo soluções para a vida real, é chamada de healthtech.

Embora as healthtechs estejam chamando mais a atenção no momento, especialmente do mercado financeiro, e esse modelo venha crescendo desde o início da década de 2000, empresas que trabalham com tecnologia já contam mais de 60 anos em países da Europa e nos Estados Unidos.

 

Saúde é sistema complexo

Muitos fatores influenciaram o atraso da entrada das healthtechs nos sistemas de saúde. De acordo com Alexandre Dias Porto Chiavegatto Filho, diretor do Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde da USP (Universidade de São Paulo), um deles é a complexidade do setor.

Chiavegatto Filho se refere aos vários fatores que influenciam desfechos graves de saúde, como os demográficos, socioeconômicos e ambientais. Isso significa que, na hora de tomar decisões sobre a saúde pública, por exemplo, as variantes são enormes porque dependem e são influenciadas por questões como tamanho da população, os recursos oficiais para a saúde e também as condições de vida das pessoas nos locais em que vivem.

"Por exemplo, a qualidade de dados (algoritmos treinados) obtidos em regiões maiores não necessariamente funcionaria bem em regiões menores", acrescenta o especialista. Para se ter ideia, segundo os dados da Distrito, em 2020, a maioria das healthtechs do Brasil estava no Sudeste (64%) e Sul (23,7%) —algo que esbarra no problema que o diretor do laboratório da USP explicou.

E ainda haveria necessidade do gerenciamento de uma diversificada cadeia de profissionais, prestadores de serviços, operadoras de saúde e indústrias que fornecem equipamentos, dispositivos, medicamentos etc.

Para além da própria natureza do segmento, outras barreiras estavam contendo a atuação das healthtechs: a reserva de mercado, o receio de compartilhar dados sensíveis, a mudança nas relações entre os profissionais e usuários (os que usam os serviços de saúde) ou pacientes (os que têm algum diagnóstico).

 

A sobrecarga do setor de saúde no Brasil

Dados da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que regula e fiscaliza planos de saúde privados, mostram que atualmente existem 699 operadoras ativas de assistência médica com beneficiários, o que resulta em uma taxa de cobertura de cerca de 25% da população nacional. O atendimento dos demais 75% fica a cargo do SUS (Sistema Único de Saúde).

Os custos não param de crescer (e aumentaram ainda mais durante a pandemia), assim como a população. Por outro lado, a disponibilidade de ações e serviços de saúde não avança na mesma velocidade. Enquanto em um convênio o tempo de espera de uma consulta com um especialista pode ser de alguns dias, talvez semanas, no SUS, uma consulta com um cardiologista, por exemplo, pode ter uma espera de até seis meses em algumas regiões do país. Os dados são do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Como faltam investimentos na área pública, já não dá para ignorar as despesas dos sistemas: o Brasil gasta em saúde 9,2% do PIB (soma de todas as riquezas produzidas), e boa parte dessas despesas são privadas. A fatia dos recursos públicos investidos nessa área representa apenas 4% do PIB, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Esse cenário tem levado os especialistas a afirmar que o modelo atual caminha para o esgotamento.

Todos esses fatores também pressionam o usuário e os pacientes, e vai ficando cada vez mais complicado para a população pagar um convênio. Entre as despesas de saúde de uma família, o maior gasto são os serviços privados, como os planos de saúde, inclusive os pagos pelos empregadores --o que representa 30%.
Aliás, no início da pandemia, a ANS contabilizava a queda de 327 mil usuários, resultado do desemprego e da perda de renda.

 

Uma luz no fim do túnel?

Essas circunstâncias mostram que as healthtechs que se dedicam ao segmento de planos de saúde têm grande espaço para atuar, e hoje já existem cerca de 30 delas no mercado brasileiro. A maioria foca na APS (Atenção Primária à Saúde), que visa orientar usuários e pacientes sobre prevenção de doenças e cuidados para a saúde, mas também oferecem outros serviços, como os convênios convencionais.

Os preços, porém, seriam mais vantajosos e todo o processo, desde a contratação até os serviços, pode ser acionado de forma digital. Para se ter uma ideia, um plano individual da Prevent Senior Premium 1001 (enfermaria), categoria que atende São Paulo e grande São Paulo e cidades como Rio de Janeiro, Distrito Federal, Curitiba e Porto Alegre, tem preços que variam de R$ 328,91 (0 a 18 anos) a R$ 1.269, a partir de 59 anos.

Segundo pesquisa da reportagem (confira tabela completa no final), há planos de healthtechs a partir de R$ 174,07 até R$ 885,80 para os mesmos grupos, respectivamente.

Mas essas empresas poderão mesmo ampliar o acesso à saúde? Na opinião de Cristiano Teodoro Russo, presidente da ABSS (Associação Brasileira de Startups de Saúde) e professor da Escola de Medicina da PUC-PR, por ora, elas não resolverão o problema porque têm atuações específicas.

Além disso, as healthtechs precisam sobreviver. Isso explicaria por que essas startups têm focado em uma camada da população com algum poder aquisitivo e estão instaladas nas regiões mais ricas do país.

Russo comenta que não há saída diferente para as healthtechs: ou elas selecionam clientes para terem faturamento, ou apostam no volume. Este, potencialmente viria por meio de uma atuação conjunta com o SUS, por exemplo, aumentando a cobertura da Atenção Básica no SUS por meio do Programa Brasileiro de Telemedicina. No entanto, tal aproximação ainda aguarda a agilidade da regulamentação (existem dois projetos de lei nesse sentido: o 1998/2020 e o 4398/21).

 

Jovens e beneficiários

Enquanto as healthtechs tentam contabilizar quais são as iniciativas de maior impacto, o paciente segue no centro da discussão. Na espinha dorsal de toda boa healthtech deve estar o benefício que o paciente terá. Daí o foco de serviços que caibam no bolso deles e se baseiem em medidas de saúde preventivas, preditivas, personalizadas e participativas. Essa prática, conhecida como medicina centrada na pessoa, encoraja o monitoramento da própria saúde e do bem-estar.

Altacílio Aparecido Nunes, coordenador do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto, afirma que identificar quem serão os maiores beneficiários das healthtechs, de maneira geral, dependerá muito de qual setor do sistema de saúde absorverá as soluções oferecidas, incorporando-as no dia a dia.

Ele ressalta que, embora a população esteja envelhecendo, o Brasil ainda é predominantemente jovem e as empresas não estão alheias a isso. Assim, o maior beneficiário das healthtechs pode ser esse grupo.

 

Vantagens e desvantagens

Antes de decidir por alguma dessas empresas, é preciso ponderar o fato de que a legislação sobre as healthtechs ainda não está consolidada, o que poderia gerar dúvidas, sugere Fernanda Schaefer, coordenadora da pós-graduação em direito médico e da saúde da PUC-PR e assessora jurídica do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Proteção de Saúde Pública do Ministério Público do Paraná.

Apesar disso, a jurista deixa claro: "Pouco importa o meio pelo qual atua a medicina. Os direitos à saúde, à privacidade e à autonomia do paciente estarão preservados, assim como seu direito como consumidor". Dito isso, compare as vantagens e desvantagens desses novos modelos de serviços de saúde:

VANTAGENS

Apelo organizacional centrado no usuário/paciente; menos burocracia; maior poder de escolha; custo um pouco mais acessível; opções de pagamento e preço personalizados; e tudo na palma da mão.

DESVANTAGENS

Benefícios oferecidos, embora promissores, ainda são tênues e não se sabe se se sustentam e avançam ao longo do tempo; cobertura regional ainda limitada; rede de uso ainda em expansão; ainda não se sabe qual é o seu real impacto na comunidade.

Healthtechs e seus desafios

Regulamentação

Fundamentar-se em legislação sólida e específica, inclusive abrangendo proteção para usuários e pacientes, não só no âmbito do direito médico, mas também segurança das plataformas, uso de dados e tempo de armazenamento

Financiamento

Sobreviver durante o período de tempo de acomodação no mercado

Lucro x propósito

Desenvolver soluções que ampliem o acesso à saúde, mas também ter rentabilidade

Inclusão digital

A infraestrutura digital do Brasil precisa melhorar. Sem isso, o alcance de quem mais precisa de cuidados com a saúde pode ser prejudicado

Concorrência feroz

Competição desigual com multinacionais do setor

Ausência de incentivo

Falta de estímulo financeiro e de políticas públicas de incentivo

Impostos

Tributação excessiva para comercializar produtos inovadores

 

O futuro próximo

Seja como for, a mudança está em curso e as principais operadoras de saúde já estão criando programas denominados open inovation, ou seja, hubs de inovação próprios que têm aberto espaço para as startups. Isso significa que, a médio prazo, os convênios médicos que hoje conhecemos poderão dar lugar a outros formatos mais acessíveis. A interação entre mercado tradicional e inovador, dia após dia, está acontecendo.

Ademais de todas as dificuldades, os especialistas entrevistados concordam que é preciso encontrar formas sustentáveis de atender às demandas da saúde, e que as healthtechs chegaram para ficar e têm potencial para revolucionar um setor que, historicamente, não usou muitos dados para tomar decisões que impactam tão sensivelmente a vida da comunidade.

Com alguma esperança, eles avistam o crescimento das healthtechs, mas esperam que ele esteja ancorado em iniciativas que incluam órgãos privados, que poderiam atuar como patrocinadores ou investidores parceiros.

Enquanto isso, novas healthtechs vão surgindo e acrescentando aos serviços oferecidos mais benefícios, como programas de financiamento para procedimentos médicos que, em breve estarão no mercado. É esperar para ver.

Fonte: UOL




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