Um medicamento oral contra a covid-19 de eficiência comprovada pode chegar às unidades básicas de saúde do país até o fim de junho, disse ao Valor o vice-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Marco Krieger.
A Fiocruz assinou na terça-feira acordo de cooperação tecnológica com a farmacêutica americana Merck Sharp & Dohme (MSD) para distribuir o molnupiravir exclusivamente no Sistema Único de Saúde (SUS). É um antiviral para infectados com eficácia de 89% contra óbitos comprovada em testes clínicos. Presente em 30 países, a droga teve o uso emergencial no Brasil aprovado ontem pela diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O acordo entre Fiocruz e MSD também lança as bases para a produção local da droga. A internalização da tecnologia é de interesse estratégico para a Fiocruz, que visa explorar a plataforma da droga para curar a dengue e a chikungunya. A MSD tem estudos iniciais e com “bom potencial” nesse sentido. A curto prazo a Fiocruz fará embalagem, rotulagem, controle de qualidade e distribuição do remédio.
A primeira droga oral do mundo contra o coronavírus com eficiência comprovada chega ao Brasil mais de dois anos depois de iniciada a pandemia. Nada tem a ver com reposicionamento de fármacos ou decisões políticas que levaram à defesa e compra da cloroquina e ivermectina pelo governo de Jair Bolsonaro. O molnupiravir foi desenvolvido para combater a covid-19. Segundo a Fiocruz, foram 14 meses de negociação mantida em sigilo entre os técnicos da autarquia e a MSD.
O presidente de Farmanguinhos, o Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz, Jorge Mendonça, diz que o país receberá medicamentos prontos para distribuição, como aconteceu com a vacina da AstraZeneca. A Fiocruz vai apenas adaptar a bula e acrescentar informações ao paciente por orientação da Anvisa. Depois, as etapas de produção serão gradativamente dominadas. “Quando o registro definitivo chegar, a parte analítica do trabalho estará avançada e vamos mirar a tecnologia, avançando na engenharia reversa até dominar todo o processo de produção”, diz.
“O objetivo principal é oferecer tão logo o medicamento ao SUS para viabilizar a preparação de uma estratégia de distribuição eficaz antes de eventual nova onda de casos. A pandemia arrefeceu, mas ainda não acabou”, afirma Krieger. A velocidade do processo vai depender de trâmites internos do Ministério da Saúde. Os técnicos da pasta definirão a quantidade de medicamentos a ser importada e qual o público-alvo deve recebê-lo.
O presidente da MSD no Brasil, Hugo Nisenbom, diz que, como aconteceu em outros países, há uma tendência de o governo privilegiar infectados idosos ou com comorbidades, grupo da ordem de “alguns milhões” de pessoas. Estariam incluídos pacientes para os quais vacinas são contraindicadas. Segundo a MSD, uma das vantagens do remédio é atender, sem riscos, pacientes multimedicados, aqueles que realizam tratamentos paralelos. Na aprovação de ontem, a Anvisa condicionou o produto a maiores de idade e negou o uso por mulheres grávidas ou que amamentam. Testes em animais, disse a agência, mostraram que altas doses de molnupiravir podem afetar o crescimento e desenvolvimento do feto.
Apesar do público inicialmente mais restrito, Nisenbom informou que há estudos em curso para aferir a eficiência do remédio se tomado preventivamente por pessoas que tiveram contato com infectados. Os resultados ainda devem ser publicados. A Anvisa contraindica o uso prévio à infecção. O tratamento, especifica a Anvisa, implica a ingestão de oito comprimidos diários por um período de cinco dias. A dosagem é de 800 mg, quatro cápsulas de 200 mg, a cada 12 horas.
Mendonça, de Farmanguinhos, detalha como funciona o remédio, induzindo a chamada “catástrofe viral”. O molnupiravir tenta imitar matérias-primas usadas pelo vírus em sua replicação. O uso dessas substâncias leva o vírus a sintetizar proteínas alteradas, “não viáveis”, que sabotam o processo. A partir daí, os novos vírus gerados não conseguem mais se replicar, o que reduz a carga viral no organismo do paciente. Esse mecanismo, diz o especialista, pode ser adaptado para o enfrentamento de outras doenças prioritárias ao país.
Segundo Nisenbom, desde a primeira aprovação por uma agência sanitária, a do Reino Unido, em 14 de novembro de 2021, o molnupiravir protagonizou mais de 5 milhões de tratamentos. Ele informou que, em 2021, a MSD produziu 10 milhões de tratamentos completos - 400 milhões de comprimidos - em unidades da farmacêutica nos Estados Unidos, Europa, Índia e China. Em 2022, a previsão é produzir mais 20 milhões de tratamentos ou 800 milhões de comprimidos, parte dos quais será enviada ao Brasil
O laboratório evita mencionar os valores a serem pagos pela Fiocruz sob o argumento de que podem variar conforme o grau de emergência sanitária e a política de uso adotada pelo governo. Mas Krieger, da Fiocruz, garante que há bom custo-benefício para a União em todas as faixas previstas no acordo. Ele explica que, em países em desenvolvimento, cada tratamento custa aos cofres públicos cerca de US$ 700, e que, no Brasil, a princípio, esse preço deve ser rebaixado a um terço, portanto na casa dos US$ 230 por pessoa tratada.
“Além do ganho de saúde à população, há uma vantagem financeira na adoção da droga no SUS, porque os gastos com pacientes internados superam em muito os desse tratamento”, diz Krieger. O acordo entre Fiocruz e MSD traz faixas de preços que variam em função do volume comprado. Essas faixas precisam ser validadas pelo Ministério da Saúde. Krieger afirma que há espaço para negociar descontos ainda maiores caso a pasta opte por uma estratégia massiva de oferta do tratamento