Na última quinta-feira, 17, o estado de São Paulo decretou o fim do uso obrigatório de máscara em ambientes fechados. A desobrigação de ter o item de segurança, que se tornou símbolo no combate contra a covid-19, vem na esteira de outras medidas de flexibilização pelo Brasil e pelo mundo, como a possibilidade de frequentar aglomerações cada vez maiores, e até o debate sobre a mudança do status de pandemia para endemia.
É difícil fazer uma previsão, com exatidão, dos rumos da doença, mas os especialistas em saúde pública fazem uma estimativa considerando dois cenários, sendo um mais otimista e outro mais pessimista. Vale ressaltar que, independentemente da projeção, há uma única certeza: vamos conviver com a covid-19 por muito tempo.
Na versão otimista, não existiria uma variante tão grave quanto a ômicron e veríamos gestores públicos reclassificando a covid-19 como uma endemia, e uma vacinação avançando de forma igualitária. Já em uma situação ruim, o aumento de casos registrados na Ásia nas últimas semanas, se espalharia por todo o mundo, forçando os governos a retomar medidas de restrição de circulação de pessoas, mas dessa vez não tão severas como as do início da doença.
Gonzalo Vecina, um dos maiores médicos sanitaristas do Brasil, explica que o vírus causador da covid-19 vai continuar existindo e que o surgimento de variantes, como a ômicron, podem atrasar os planos de governos em decretar o fim da pandemia.
“O vírus não vai desaparecer, mas deixa de ser uma emergência pública. A covid-19 deve ser algo similar ao que ocorre com a gripe, de forma sazonal. Ainda precisamos ver se a quarta dose de vacina vai ser para todo mundo, se haverá a necessidade de uma quinta dose. Se não tivermos o surgimento de uma nova variante de importância, a pandemia acaba dentro de duas a três semanas no país”, afirma.
No Brasil, tudo indica que devemos enfrentar um cenário híbrido nos próximos meses, entre o otimista e o pessimista, muito em decorrência da vacinação, que ultrapassa os 73% da população com pelo menos duas doses ou a vacina de dose única. Tudo vai depender de como vamos conseguir equalizar as diferenças de aplicação existentes no país.
A desigualdade na aplicação das doses contra o coronavírus no Brasil - e também no mundo - pode colocar em xeque os avanços no combate à doença, além do potencial surgimento de novas variantes. Enquanto o estado de São Paulo tem a maior taxa de vacinação do país, com mais de 82% da população protegida com as duas doses, outras localidades, como o Maranhão, têm 56% de imunizados.
O pesquisador Raphael Guimarães, do Observatório Covid-19 da Fiocruz, explica que não existe uma taxa exata de vacinação para dizer que o pior já passou, todavia há um caminho para trilhar e então considerar que a situação está sob controle. “Não tem número mágico, mas a meta deveria ser em torno de 90%, considerando o esquema vacinal completo”, diz.
Outro debate que ainda precisa ser finalizado é sobre o que se considera uma imunização completa. Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Institute, nos Estados Unidos, defende que só deveríamos usar este termo levando em conta a terceira dose - ou dose de reforço.
Ela ainda lembra que é preciso definir uma estratégia para os idosos, acima de 80 anos, que tomaram a Coronavac no Brasil. “Ela é uma boa vacina, mas estudos mostram que, com o passar do tempo, a efetividade para prevenir mortes fica em 30% neste grupo, menor do que o mínimo de 50% estabelecido pela OMS [Organização Mundial da Saúde]”, afirma a epidemiologista.
O governo de São Paulo anunciou que vai começar a aplicação da quarta dose de vacina contra a covid-19 em idosos acima de 80 anos a partir da segunda-feira, dia 21 de março. A nível nacional, o Ministério da Saúde argumenta que ainda não há dados suficientes para recomendar uma aplicação neste grupo etário.
Há dois anos, a OMS classificava a covid-19 como uma pandemia. Isso deu um status de emergência global à doença e direcionou recursos e esforços para um combate não só sanitário, mas também econômico, a uma das maiores crises de saúde pública da história da humanidade. Essa atenção mundial resultou no rápido desenvolvimento de uma vacina, que mudou o curso da covid-19 para um controle maior, sobretudo onde há mais pessoas imunizadas.
Além do debate sobre quantidade de doses suficientes para garantir uma proteção eficaz, há outro sobre a alteração do status de pandemia para endemia, como já feito pelo Reino Unido. Pode parecer algo apenas semântico, mas essa reclassificação modifica a maneira como vamos lidar com a covid-19.
Essa alteração não abrange só o sentido de saúde, mas também econômico. Os fechamentos de setores que geram mais aglomerações vão ser cada vez menos necessários e alguns protocolos de segurança, como o uso obrigatório de máscara, também devem ficar no passado. E os sinais de mudança já estão aparecendo, com diversas capitais anunciando o fim da proteção facial.
No Brasil, dentro do governo federal, já há um debate para rebaixar a covid-19 para endemia, como vem falando o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e o próprio presidente Jair Bolsonaro. O presidente chegou até a dizer que o Ministério da Saúde vai decretar “o fim da pandemia” nas próximas semanas.
A nível global, a OMS ainda tem cautela para fazer tal reclassificação por entender que há aumento de casos ocorrendo em diversos países, como na China, e a vacinação não avançar de forma igualitária pelo mundo, em especial em países africanos que não chegaram a níveis mínimos aceitáveis.
A África do Sul tem 29% de pessoas com o esquema completo de vacinação, e a Nigéria apenas 4%, de acordo com dados da plataforma Our World in Data, ligada à Universidade de Oxford.
Denise Garrett alerta que no mundo há 3 bilhões de pessoas que não receberam sequer a primeira dose. “Enquanto nos países ricos cerca de 80% das pessoas já tomaram pelo menos uma dose de vacina, em nações mais pobres este número é de 13%. É inviável vacinar o mundo todo anualmente, o que precisamos é aplicar as três doses agora”, diz.
A médica Rosana Onocko Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), lembra ainda os imunizantes liberados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária no Brasil não abrangem toda a população, deixando de fora crianças de zero a quatro anos.
“Com a volta às aulas presenciais, essas crianças vão começar a circular em ambientes em que o contágio é grande, e ainda ter contato com os avós, que são idosos e vulneráveis ao coronavírus”, diz. Na opinião da presidente da Abrasco, o cenário é propício para o surgimento de variantes.
O surgimento da ômicron fez o alerta disparar novamente em todo o mundo desde o fim do ano passado. O Brasil, por exemplo, viu o número de casos diagnosticados por dia bater recordes, passando dos 200 mil testes positivos, no começo de fevereiro deste ano.
Mas a vacinação mostrou que é capaz de controlar a doença, sobretudo na forma mais grave. Tanto é que neste pior momento de diagnósticos positivos, as mortes não subiram na mesma proporção e ficaram em um terço da média de 3 mil mortes registradas no pico, em abril do ano passado. Atualmente este número está em 349, segundo dados do Ministério da Saúde.
O fim da classificação da covid-19 de pandemia para chamá-la de endemia era esperado no fim do ano passado, mas o cenário mudou com a ômicron, altamente transmissível. Mesmo que a vacina seja eficaz contra as formas graves da doença, ela não impede a infecção, que tende a ser de forma leve, ou assintomática.
É justamente isso que ocorreu no caso da China, que precisou confinar milhões de pessoas na semana passada, e onde as proibições de aglomeração já foram retiradas há meses. Coreia do Sul, Vietnã e Nova Zelândia também precisaram adotar medidas semelhantes nos últimos dias devido ao aumento de casos, sobretudo na versão mais leve. Países que adotaram políticas restritivas de circulação no começo da pandemia conseguiram relaxar as medidas de proteção de forma mais antecipada que o Brasil.
Isso possibilitou que uma ‘prima’ da ômicron, a variante BA.2, pudesse circular livremente nessas localidades. Gonzalo Vecina destaca que esta variante é mais preocupante que a chamada deltacron (que une a delta e a ômicron), que chegou a ligar o alerta das autoridades de saúde pelo mundo, porque ela é muito mais transmissível que a anterior.
O médico sanitarista avalia que ainda estamos longe de ter casos similares ao que ocorreu na Ásia, mas que é preciso analisar as consequências da retirada de máscara em todo o país. “A situação está muito melhor aqui em termos de imunização e a vacina responde também sobre a variante BA.2”, diz.
Na ciência e na saúde pública, as ações e conclusões são baseadas em fatos concretos. Como na covid-19 as mudanças dos cenários são rápidos e frequentes, qualquer previsão é difícil de se fazer. Os especialistas dizem que, apesar da população estar cansada e a vacinação estar alta, é preciso entender que o coronavírus ainda não acabou.