Quando o Talibã recuperou o controle do Afeganistão em 2021, a ONU afirmou que a crise provocara uma fuga de 3,5 milhões de pessoas, deixando os que permaneceram imersos no “colapso dos serviços de saúde”, conforme análise da própria OMS. Mas, enquanto muitos grupos de saúde deixavam o país, uma instituição de caridade com alguma experiência em tecnologia digital em saúde, continuou operando com serviços de telemedicina. Apesar da deterioração das redes de comunicação, o instituto Arian Teleheal ofereceu aos médicos locais acesso a teleconferências com 150 especialistas médicos espalhados por todo o mundo (voluntários). Mesmo usando tecnologia ‘cotidiana’, como canais de mídia social e smartphones, a instituição manteve-se no ar. Palwasha Anwari, médica nascida no Afeganistão e que deixou o país em novembro, expressa a importância desse ‘fio de esperança conectiva’: “A telemedicina não vence a guerra, mas traz uma vitória rápida, principalmente para os serviços de diagnóstico e para o primeiro atendimento de casos incomuns. Ela traz aos pacientes alguma esperança, mas, principalmente, mostra aos médicos que ficaram no país, muitos deles em estado de trauma, que não estão sozinhos, que não foram abandonados e que estamos mais perto deles do que imaginam”. A remotelização dos cuidados de saúde, principalmente no primeiro atendimento, é uma colossal conquista da prática médica neste século.
Nesse contexto, inúmeras organizações públicas e privadas emergiram à superfície dos Sistemas de Saúde, como, por exemplo, o serviço híbrido da Amazon Care, o braço de atendimento à saúde de uma das três maiores bigtechs do planeta. Ela anunciou em fevereiro de 2022 a sua expansão por todo os EUA. Seus serviços que já estavam em 20 cidades alcançam agora mais 20, caminhando para ser “on-demand em todos os 50 estados do país”. Lançado em 2019 como um programa piloto só para os funcionários da empresa, em março de 2021 foi aberto a todas as corporações empregadoras dos EUA, disponibilizando serviços de atendimento domiciliar virtual e presencial (este, já disponível em 9 cidades). Na trilha da Covid-19, os serviços de saúde da América do Norte passam por reformas. Todos aprenderam, erraram, acertaram e se preparam agora para garantir a sua fatia num mercado de “4 trilhões de dólares”. Quando escrevemos há oito anos que o setor de saúde “era inevitavelmente atrativo para os grandes players de tecnologia” houve descredito, principalmente por parte dos incumbentes do setor. Hoje, um usuário do serviço Amazon Care acessa seu aplicativo de atendimento digital, utiliza vídeo-consulta, recebe prescrições de medicamentos (entregues pela Amazon Pharmacy), pode ser atendido em sua residência, realiza testes domiciliares e já recebe até serviços de vacinação. Centrado na Atenção Primária, a empresa atende hoje mais de 1,3 milhões de usuários, oferecendo uma plataforma tecnológica (B2B) que além do Amazon Care inclui: (1) o Alexa Care Hub, uma assinatura que ajuda os cuidadores a fornecer suporte remoto à idosos (US$ 20/mês); (2) o vestível de pulso Halo, para rastreamento da saúde; e (3) o Amazon HealthLake, um serviço que oferece às empresas visualização de dados dos pacientes (anonimizados), além de health analytics e gestão de recursos.
É verdade que a Amazon fracassou de forma retumbante em 2021 no projeto Haven Health (em conjunto com a JP Morgan e Berkshire Hathaway, de Warren Buffett). Mas passado um ano da derrocada, a empresa caminha isoladamente buscando espaço no mercado global de telehealth, que atingiu US$ 70,5 bilhões em 2020, mas empina para US$ 598,3 bilhões até 2028 (CAGR de 29,2%). Nesse sentido, os que “achavam que ela não vinha”, depois do desastre da Haven, se abismaram: a empresa objetiva ser a “porta de entrada” da cadeia de serviços de saúde dos EUA. A pergunta poderia ser: mas o que diferencia a oferta Amazon Care de outras dezenas de empresas que oferecem as mesmas opções de serviço remoto? Vários traços ajudam a responder: a sua capilaridade; sua vasta concentração de expertise tecnológica (colaboradores); o fato de ser a maior provedora de cloud computing do mundo; a possibilidade de oferecer uma “cesta de insumos avançados” para saúde; mas, acima de tudo, sua principal força é um caixa de US$ 29,9 bilhões (contra US$ 823,8 milhões da Teladoc, uma de suas principais concorrentes). Lembra um pouco a velha piada do Rabino e do Padre que vão a uma luta de box e um dos lutadores entra e faz o sinal da cruz. O Rabino pergunta ao Padre: “o que ele está fazendo?” O Padre responde: “nada, se não souber lutar”. O novo jogo da cadeia digital de serviços de saúde exige uma incrível musculatura na prática de errar menos e ter condições ($) de lutar mais.
Bigtechs, como Google, Apple, Amazon, Microsoft, Oracle entre outras, investem cada vez mais em healthcare. Quase um jogo duplo: de um lado apoiam os players da saúde na sua transformação e expansão digital, do outro lado competem com eles. O exemplo da Amazon é poderoso: a empresa estabelece iniciativas para transformar o varejo farmacêutico, a cadeia de suprimentos médicos, o seguro de saúde e a prestação de cuidados remotos. Aproveita o seu “poder de entrega” e abre espaço no supply chain para inserir o seu “poder de venda”. Nada errado, se os clientes concordam. Na Índia, por exemplo, a Apollo Pharmacies Ltd (do grupo Apollo Hospitals, a maior rede de saúde privada do país) fez um acordo com a Amazon India para disponibilizar seus produtos farmacêuticos na Amazon Pharmacy, aprimorando o foco omnichannel de seu negócio varejista. Essa prática chama-se “coopetição”, um mix de “cooperação” e “competição”, onde vale a máxima: “ceder no contornável e ganhar no essencial”. O mesmo com a Apple, que inova cada vez mais em seus wearables de fitness, mas tem como ‘motor de arranque’ o Apple Health, um EHR interconectado a seus devices, já sendo utilizado por mais de 120 hospitais e laboratórios de análise nos EUA. Coopetição na veia!
Mesmo os fracassos do Microsoft HealthVault e do Google Health não desanimaram as bigtechs de transformar a saúde, mas agora o fazem pelo “lado de dentro” (M&A). Outro bigplayer mergulhando no oceano da saúde é a gigante Oracle, que em dezembro de 2021 adquiriu por US$ 28,3 bilhões a Cerner, uma das duas maiores provedoras de EHR dos EUA. A fusão foi acelerada por problemas que corroíam a Cerner: seu EHR é baseado em desenvolvimento desatualizado e código proprietário, que não funciona bem em nuvem. A Oracle deverá adicionar uma camada sofisticada de arquitetura de software para cloud, turbinando as soluções da Cerner (pelo “lado de dentro”). O alcance da transação tem um alvo: mover a Saúde para a nuvem. “Com essa aquisição, a Oracle assume a responsabilidade de fornecer aos profissionais médicos sobrecarregados de trabalho uma nova geração de ferramentas digitais fáceis de usar e que permitam o acesso a informações por meio de uma interface de voz hands-free, com a proteção segura de ter os aplicativos em nuvem. Essa nova geração de sistemas médicos promete reduzir a carga de trabalho administrativa dos médicos, melhorar a privacidade e os resultados com os pacientes, além de reduzir os custos gerais da saúde", explicou um exultante Larry Ellison, co-fundador e CTO da Oracle. Não é uma tarefa fácil, mas é mais fácil quando o provedor de tecnologia é uma companhia com 400 mil clientes, presente em 145 países, avaliada em US$ 280 bilhões (Cerner não chega a US$ 5 bilhões) e que detém o maior ambiente de dados de terceiros do mundo.
A Alphabet, controladora da Google, tem boa parte de seu portfólio de negócios na Saúde. Desde 2020 a gigante de tecnologia detém investimentos em 25 empresas da área clínica, avaliadas coletivamente em mais de US$ 1,6 bilhão (fonte: Crunchbase). Perto de 17% de todos seus ativos está na carteira da Saúde, como as empresas: Treeline Biosciences, especializada em biomedicina de precisão em oncologia; Prime Medicine (genética); Leyden Labs, focada na prevenção viral; Brightline, provedora de cuidados para saúde comportamental de jovens; etc. Um passo decisivo foi dado em 2021 com a aliança da Google e a rede HCA Healthcare, que possui 185 hospitais, mais de 2 mil locais de atendimento e 250 mil profissionais de saúde em sua plataforma de serviços. Nessa aliança, a Google Cloud desenvolve algoritmos baseados nos EHRs da HCA. Coopetição em estado puro! Já a Verily Life Sciences, braço de life-science da Alphabet, se expande para o setor de seguro-saúde por meio da Coeficiente Insurance Company, uma subsidiária focada no modelo de seguro “stop-loss”, voltado a empregadores.
Ao contrário do que se possa imaginar, o avanço das bigthecs é um alívio para um setor que está 50 anos atrasado em produtividade. A Google anunciou em janeiro acordo com University of California (Santa Cruz Genomics Institute) para criar um método baseado em IA para acelerar a análise do sequenciamento genético. O YouTube, também em 2022, fechou aliança com o New England Journal of Medicine para aumentar o acesso a informações precisas em saúde, reduzindo as falácias negacionistas. A Microsoft se juntou a Artificial Intelligence Industry Innovation Coalition numa aliança voltada a desenvolver práticas de IA para uso na saúde. São centenas de ações semelhantes das bigtechs que ajudam a desenvolver as tecnologias clínico-sanitárias, que ainda estão muito aquém das demandas de um mundo com 7,3 bilhões de pacientes. Todavia, não será desintrincado: os grandes players de tecnologia serão obrigados a se moldar ao ambiente sociocultural da saúde, onde “ser grande” importa, mas “ser ético” importa ainda mais. Nos últimos três anos, algumas dessas empresas se notabilizaram por criar problemas sensíveis dentro do universo digital: polarização política, manipulação do consumidor, discriminação por meio de algoritmos, quebra de privacidade, etc. Ardilosas e nem sempre bioéticas, algumas passaram a ser alvo de “ações-regulatórias-governamentais” para proteção do consumidor. A Comissão Europeia, por exemplo, está absolutamente antenada nos desvios de privacidade, investigando junto com a Radboud University, da Holanda, os riscos do envolvimento das bigtechs no ecossistema de saúde.
Mas, até onde a Amazon está estabelecida para continuar a sua expansão na Saúde? Ela está pronta, por exemplo, para ser a maior operadora de serviços de entrega dos EUA, que tem um colossal impacto nos sistemas saúde. Essa “máquina de entregas” possibilitou, por exemplo, que a empresa enviasse e recolhesse rapidamente testes próprios de PCR-RT na pandemia, ou seja, foi capaz de enviar produtos farmacêuticos para qualquer residência dentro da América do Norte. Uma estratégia da empresa já está clara: seu objetivo é “comer a sopa pelas beiradas”, ou seja, avançar sem espalhafato, sem publicidade, entregando um serviço de cada vez à medida que sente as brechas no mercado. “O movimento deles é grande, mas é também longo”, diz Robin Gaster, pesquisador da George Washington University Institute for Public Policy e autor do livro “Behemoth, Amazon Rising: Power and Seduction in the Age of Amazon”. Para ele, as mudanças na área da saúde da empresa serão sutis, delicadas e muito bem planejadas. O movimento da Amazon Care voltado a atenção primária, por exemplo, mostra essa preparação. Com baixo reembolso aos provedores de serviços, e poucos procedimentos a serem cobrados, os cuidados primários sempre foram um problema para a saúde dos EUA. Porém, quem pode oferecer um primeiro atendimento bem articulado, automatizado e remoto ganha espaço, sem falar na redução dos cuidados na média e até na alta complexidade.
No século XXI, os pacientes querem o trinômio conveniência, acessibilidade e preço. Quando a escala é pequena, entre 5 e 50 mil beneficiários, é complicado entregar esse trinômio. Mas para a Amazon, escala não é um problema, mas uma oportunidade. Um exemplo é o Halo, seu vestível de pulso para diagnóstico e rastreamento de condicionamento físico: em 2022 a empresa deve lançar um rol de novas funcionalidades, que ajudarão em muito aos usuários do Amazon Care. Hoje, um usuário-Halo pode achar que a maioria das funcionalidades oferecidas pela ferramenta são “desinteressantes”, mas para o usuário-AmazonCare é diferente: parte do circuito de controle de seus problemas de baixa complexidade pode ser controlado a distância por esses devices. Monitorar os níveis de atividade física, frequência cardíaca, sono, percentual de gordura corporal, tom vocal, entre outras elementos, pode ser de fundamental importância para quem já realizou uma consulta virtual, obteve um diagnóstico e precisa equalizar os sinais vitais com seus sintomas. Ou seja, saber que meu batimento cardíaco está alterado no jogging matinal pode não ter nenhum significado, mas se meu telemédico já identificou algum contorno de cardiopatia no primeiro atendimento, o batimento ganha relevância e pode fazer o Halo ser um importante suporte a decisão clínica.
Outro elo da cadeia Amazon na saúde é o Alexa, seu assistente digital residencial. Ele já possui uma biblioteca de conselhos para amamentação, primeiros socorros e gerenciamento de medicação. A empresa vê o Alexa como um “centro de atendimento domiciliar”, com potencial de uni-lo a Amazon Care e ao Halo. Em outubro de 2021, por exemplo, a empresa anunciou que o Alexa Smart Properties seria usado por provedores de serviços para idosos e hospitais, como Boston Children's Hospital, Cedars-Sinai, etc. Eles usam o Alexa para conectar médicos e pacientes, sem precisar entrar no quarto de internação (ou de recuperação). Por outro lado, essa ferramenta complementa o Amazon Together, um serviço de assinatura que permite aos entes queridos verificarem remotamente os adultos que vivem isoladamente. “É uma solução bastante inteligente para um problema crescente, tanto para pais que vivem longe dos filhos adultos e vice-versa”, explica Gaster. Se no smartphone posso rastrear uma encomenda, ou uma entrega, vendo no aplicativo o mapa de sua localização e sabendo a previsão de entrega, por que a mesma tecnologia não pode ser utilizada no atendimento clínico domiciliar?
Para entender a estratégia do eixo Amazon Care é preciso não esquecer do Amazon HealthLake, lançado em meados de 2021. Trata-se de um serviço de armazenamento de dados realizado por meio da plataforma AWS, oferecendo às organizações de saúde um serviço de análise e visibilidade dos pacientes. Como explica Gaster: “No mundo de aprendizado de máquina e inteligência artificial, quem tiver mais dados corre na frente”. O Rush University Medical Center, por exemplo, utiliza o Amazon HealthLake para entender os gaps assistenciais da organização, dos pacientes e da doença. No fundo, a empresa está fazendo o que todas as empresas do setor de saúde já deveriam estar fazendo há décadas: produzir valor informacional e estrutural para que o primary care seja uma inesgotável fonte de redução de doenças, mitigação de custeio e melhoria da qualidade assistencial. Com ou sem coopetição.
É possível que no curto prazo os serviços da Amazon Care nunca cheguem ao Brasil, mas seu modelo já chegou. Basta olhar o relatório Startup Scanner, realizado pela Liga Ventures com o apoio estratégico da PwC Brasil, que mapeia 489 healthtechs nacionais. Mais da metade das ferramentas oferecidas envolvem atuação direta em serviços de “cuidados primários”. Aliás, o “cuidado primário” transformou-se num dos maiores negócios globais em saúde. Nos EUA, por exemplo, investidores privados, varejistas e seguradoras de saúde estão injetando bilhões de dólares em empreendimentos do primary care, numa reversão histórica que transforma uma das áreas menos lucrativas da medicina num ‘tiro de retorno certo’. Empresas norte-americanas focadas em cuidados primários arrecadaram cerca de US$ 16 bilhões de investimentos em 2021. Isso é mais de quatro vezes o valor investido em 2020 e acima dos míseros US$ 15 milhões relatados em 2010. Análise publicada em 11 de fevereiro de 2022 pela Bloomberg (“Medicine’s Worst-Paying Specialty Is Luring Billions From Wall Street”), mostra como o primary care está mudando o contexto da cadeia de saúde e atraindo investimentos. “Os hospitais há muito procuram dobrar as práticas médicas para direcionar encaminhamentos ao atendimento especializado. Agora, eles enfrentam mais concorrência de seguradoras de saúde, redes de drogarias, empresas de investimento e startups focadas em tecnologia. Essa consolidação pode fazer com que o sistema de saúde americano, notoriamente fragmentado, funcione melhor para os pacientes que buscam custos mais baixos”, explica a análise. A CVS Health, por exemplo, controladora da seguradora Aetna e uma das gigantes do varejo farmacêutico, planeja colocar médicos em 350 de suas lojas de varejo. “O que estamos realmente tentando fazer agora é atenção primária, gerando uma influência significativa em toda a continuidade da atenção à saúde”, disse Karen Lynch, CEO da CVS.
Nosso Jorge Ben Jor profetizou em 1972: “Diziam que a Terra era quadrada, mas ficou provado que a Terra é redonda, caramba...!” Quem diria que 50 anos depois de compor “Caramba... Galileu da Galileia” o compositor ainda veria pessoas achando que a terra é quadrada! É redonda, as vacinas funcionam, a telemedicina venceu e o ‘patinho feio’ Amazon Care se expande, ao contrário dos céticos que achavam a iniciativa da empresa um total devaneio. Parafraseando a mesma canção do poeta Jorge: disseram que ela não vinha, mas olha ela aí.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)