A pandemia deixou os brasileiros mais ansiosos e deprimidos e, com isso, aumentou de forma significativa a procura por atendimento em serviços de saúde mental tanto na rede privada quanto na pública. Especialistas afirmam que os efeitos negativos do prolongamento e do agravamento da pandemia no país farão com que essa demanda continue em alta nos próximos anos.
Pesquisa da Ipsos para o Fórum Econômico Mundial com 30 países divulgada na semana passada mostra que o Brasil é o quinto país onde os entrevistados mais sentiram uma piora na saúde mental no último ano: 53% dos entrevistados por aqui afirmaram que sua saúde mental mudou para pior desde março do ano passado.
“Pessoas que já tinham um adoecimento mental, uma condição instalada antes mesmo da pandemia, pioraram. E outras foram sensibilizadas pela pandemia e passaram a procurar ajuda”, afirma Nathalia Pereira, coordenadora do programa de saúde mental da operadora de planos de saúde Amil, iniciativa que teve um aumento de 50% na demanda.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) relatou que 59% de seus associados perceberam aumento de até 25% nas consultas no período; 69,3% atenderam pacientes que já haviam recebido alta; e 82,9% perceberam o agravamento dos sintomas em pacientes que ainda estão em tratamento.
Nathalia relaciona o aumento dos atendimentos aos efeitos do distanciamento social e aos medos provocados pela disseminação da covid-19. “Há o medo do contágio de si mesmo e de pessoas queridas, a ansiedade pelo surgimento de uma solução”, afirma. Um tema recorrente entre os pacientes, diz, é a reflexão sobre a finitude da vida, devido ao número de mortes elevado.
Os transtornos mais comuns entre as pessoas que estão buscando atendimento são episódios depressivos, ansiedade e somatizações, diz Nathalia. Há também aumento de casos de “burnout” (esgotamento), abuso de álcool e drogas. “E há também um número muito grande de atendimentos de pessoas enlutadas, que têm buscado suporte emocional.”
Nathalia observa que, no início da pandemia, em março e abril do ano passado, houve uma demanda muito forte de pessoas que buscavam um suporte mais imediato, pontual. Com o prolongamento da situação, o número de atendimentos diminuiu, mas a gravidade dos casos aumentou.
“Todo mundo lotado. Não conheço um psicólogo que não esteja no limite da exaustão, pelo excesso de trabalho”, relata o terapeuta Alexandre Coimbra Amaral. Segundo ele, as queixas relacionadas à pandemia estão concentradas em quatro eixos psíquicos de sofrimento mental.
O primeiro, “o maior deles”, é o luto, não apenas pelas mortes - que se acumulam, sem dar tempo de elaborar cada falecimento, que é seguido de outro, ou outros, muitas vezes na mesma família -, mas também para digerir as demais perdas, como a ausência da escola para as crianças, a impossibilidade de se reunir com amigos ou familiares, de consumir cultura presencialmente (idas a shows, teatros e cinema, por exemplo) e de ir e vir na cidade, relata o psicólogo.
Em seguida, vêm ansiedade, depressões associadas à exaustão que todos que não são negacionistas estão sentindo e relação entre a vida profissional e a pessoal, “essa fronteira cada vez mais difícil de ser desenhada, em que a gente admite que o trabalho invadiu a casa, e a casa invadiu o trabalho”, diz.
Talita Fabiano de Carvalho, que faz parte do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), observa que houve perda dos espaços de diversão e socialização, que funcionam como um escape para o estresse e a ansiedade, junto com excesso de vida digital, que já era um problema antes da pandemia. “As pessoas estão com exaustão mental significativa, em especial aquelas que passaram a usar as tecnologias de informação também para viabilizar a vida no trabalho.”
O levantamento da ABP identificou o que a entidade chamou de “fadiga do Zoom”: 56,1% dos psiquiatras responderam que os pacientes reclamaram de excesso de videoconferências.
Outras questões que têm aparecido com frequência, diz Talita, são o aumento do consumo excessivo de comida, bebidas, cigarros e drogas. E a vulnerabilidade financeira tem gerado muito sofrimento psíquico. São características, diz, dos atendimentos tanto no sistema público quanto no privado.
Pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde no ano passado, com cerca de 17,5 mil pessoas, 47% de bairros populares e 24% com renda até R$ 2,1 mil, verificou que ansiedade (relatada por 86,5% dos pesquisados) foi o transtorno mental mais relatado, seguido por transtorno de estresse pós-traumático (45,5%) e depressão em sua forma mais grave (16%).
As marcas psíquicas da pandemia vão continuar por algum tempo, avalia Talita. “É muito tempo de pandemia. Há um processo de medo, de perdas não ritualizadas. Isso pesa.”
Estudos apontam que a quarta onda das consequências da covid-19 será a da saúde mental, das questões emocionais, diz Nathalia, da Amil. “Essa onda de aumento da demanda por atendimento de saúde mental já existe, mas pode ser maior no futuro. A pandemia deixa marcas que podemos levar um tempo maior para elaborar.”
Com mais pessoas procurando ajuda para lidar com o estresse, psicólogos que estavam afastados da profissão voltaram a atender pacientes - majoritariamente on-line -, conta Coimbra Amaral, que também promove cursos e grupos de conversa entre profissionais.
O CRP-SP registrou aumento expressivo no número de reativações de profissionais, observa Talita Carvalho. “Muitos psicólogos que não estavam na ativa voltaram a atender e muitos estão buscando o registro específico para atendimento on-line.”
Em março do ano passado, a Amil começou a oferecer o teleatendimento para suporte de saúde mental e outras emergências. “Percebemos um aumento expressivo na demanda”, diz Fernando Pedro, diretor de gestão de valor em saúde da Amil. As pessoas se sentiram confortáveis com o ambiente digital, afirma. Ele cita estudo publicado pela Deloitte que mostrou que 50% dos que fazem tratamento para distúrbios como insônia e ansiedade se sentiriam mais confortáveis em fazê-los remotamente.
Recentemente, a operadora lançou uma campanha publicitária para combater os preconceitos que envolvem a saúde mental. “Queremos falar sobre o assunto. Reduzir o estigma significa ter diagnósticos mais precoces e contribuir com a prevenção de quadros mais graves”, diz.
Por conta de todo esse cenário, também tem aumentado a demanda por psicólogos por parte de empresas preocupadas com a saúde mental dos seus colaboradores. “O trabalho remoto, a princípio, pareceu uma saída, inclusive com uma relação entre custo e efetividade interessante, possível, para a pandemia, mas agora as empresas estão percebendo os malefícios inerentes não só ao trabalho remoto, mas ao trabalho remoto dentro da pandemia e o quanto isso tem gerado sofrimento mental”, diz o terapeuta Alexandre Coimbra Amaral.
Uma dificuldade que as empresas encontram ao tentar abraçar o assunto é o preconceito em relação ao tema, por parte dos próprios colaboradores. A diretora de desenvolvimento organizacional e cultura na Unilever Brasil, Ana Paula Franzoti, conta que a empresa tem, já há alguns anos, um programa de ajuda psicológica, jurídica e financeira. Ao contrário do que ela e sua equipe tinham certeza que ocorreria, a demanda por atendimento não cresceu no último ano.
“Por que será que as pessoas não estão buscando, se a gente está em um contexto emocional tão difícil? A gente acredita que passa por desmistificar o que significa atendimento psicológico”, diz Ana Paula. Para derrubar preconceitos, a empresa tem divulgado internamente depoimentos de funcionários que passaram pelo programa e “garantir que essa oferta chegue efetivamente às pessoas”.
Especificamente para a pandemia, a multinacional destinou uma sala em cada uma das dez fábricas no país para atendimento on-line psicoterapêutico disponível 24 horas por dia. E lançou, no fim do ano passado, um programa global, chamado Mental Health Champions, que visa capacitar um funcionário por área para ser o “ombro amigo”, para acolhimento das pessoas em dificuldades, mas que não querem procurar terapia, e até ajudá-las a procurar ajuda profissional.
Outro preconceito que o interesse das empresas na saúde mental dos funcionários desperta é o receio de muitos deles de compartilhar informações da vida pessoal e que essas sejam usadas de forma a prejudicá-los. Quanto a isso, Ana Paula esclarece que o programa de apoio psicológico da Unilever é um serviço prestado por outra empresa, que não compartilha os dados com a multinacional, e que os atendimentos são anônimos.
Desde o começo do mês, a gigante dos bens de consumo faz parte de um movimento chamado #MenteEmfoco, lançado pela Rede Brasil do Pacto Global da ONU e pela agência de comunicação InPress Porter Novelli, em parceria com a Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), que convida empresas e organizações brasileiras a reconhecer a importância da saúde mental no ambiente de trabalho e a agir em benefício de seus colaboradores. Também são signatárias da iniciativa: Ambev, Hospital Sírio-Libanês, UPS, Grupo Conexa, Mapfre e Afya Educacional.
Em meio a tantas perdas ainda não encerradas ou contabilizadas, o fato de a pandemia ter trazido a preocupação com a saúde mental para dentro das empresas já pode ser considerado um avanço, como lembra a executiva da Unilever. E engana-se quem acha que esses ganhos são apenas para os trabalhadores - o que já deveria ser motivo suficiente para as empresas se interessarem pelo assunto.
“O funcionário que está bem prospera na vida pessoal e na vida profissional. Então, se você olha o funcionário como um ser único, holístico, como um indivíduo que não tem essa separação de trabalho e pessoa, e você cria mecanismos para que ele possa prosperar dentro do que ele faz na organização e cria esses espaços de diálogo com a liderança etc., as organizações vão ganhar muito.”