A complexidade do sistema de saúde brasileiro fica evidente em praticamente qualquer encontro que se proponha a debater o desenvolvimento da assistência. Não diferente foi a impressão ao fim do debate “Os desafios de um modelo dividido entre público e privado e os caminhos para uma relação mais equilibrada”, realizado na última quarta-feira (28), na sede da IT Mídia, em São Paulo.
Uma população de quase 200 milhões de habitantes, três esferas de atuação e uma constituição que estabelece que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado já denotam o desafio do Brasil em promover acesso à população a um serviço de qualidade.
Além das disputas partidárias entre os níveis federal, estadual e municipal, que prejudicam o funcionamento das redes de assistência do Sistema Único da Saúde (SUS), os serviços privados também acabam disputando com o SUS ao invés de serem um complemento para aqueles que optam por pagar. Para se ter uma ideia, dos 10,2% do PIB gastos com saúde, 57% foram gerados pela iniciativa privada – ou seja 14% a mais do que o público, que supostamente deve garantir o cuidado a todos.
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Falta de diálogo, intensa fragmentação, subfinanciamento e propósito incongruente resumem os entraves da relação entre o público e o privado evidenciados pelos participantes do último Saúde Business Debate: Arlindo de Almeida, presidente da Abramge (Associação Brasileira de Medicina de Grupo); Marília Louvison, Professora Doutora da faculdade de saúde pública da USP e Presidente da Associação Paulista de Saúde e Yussif Mere Júnior, médico nefrologista e presidente do Sindhosp (Sindicato dos Hospitais do Estado de São Paulo).
Tanto Almeida (Abramge) como Mere Júnior (Sindhosp) afirmam que questões ideológicas ainda separam a saúde suplementar do SUS. “Outro dia ouvi um representante do Ministério [da Saúde] falar que o maior erro foi ter permitido a entrada da iniciativa privada na Saúde”, disse Mere Júnior, ressaltando que o que “precisamos é de um sistema nacional de saúde, que integre todos os entes”.
Almeida caracteriza a política do SUS como “extremamente paternalista”. “A Saúde tem que ser um dever do Estado, do cidadão e dos gestores”, diz ele e completa “o SUS tem que ser mais garantidor do que fazedor, ele pode delegar”.
A professora Marília foi enfática ao discordar que haja interesse em acabar com o sistema privado – e defende que o SUS foi uma escolha da sociedade -, mas expõe de maneira contundente que há o “atravessamento” dos interesses privados na lógica do SUS. “Acho que o público tem que contratar do privado o que ele precisa, mas ainda existe uma fragilidade regulatória muito grande”, afirmou Marília.
Em palavras simples esse “atravessamento” pode ser explicado levando em consideração que os serviços privados planejam suas estratégias e investimentos com foco no lucro em detrimento, muitas vezes, do que realmente o paciente necessita. O debate deixa claro que não há algozes e vítimas, mas a necessidade de um debate estrutural, principalmente com a sociedade – para saber se ela realmente quer esta integração.
De um lado está o Sistema Único conceituado a partir da construção de um serviço em rede, baseado na atenção básica, por meio de iniciativas e programas como o de Saúde da Família, que deve se articular com os outros níveis de atenção. Por outro lado, “não formamos médicos para esse sistema que se pretendia construir”, afirma Marília, lembrando que a ideia é que os profissionais do SUS (multiprofissionais) estejam próximos da população de uma determinada região, fazendo todo o acompanhamento e direcionamento do cuidado.
“Mas o médico hoje chega na faculdade querendo cuidar de alguém e sai querendo fazer procedimento, montar um consultório, fazer grandes cirurgias. Se ele for para o sistema público, se sente um derrotado, sendo que a maioria das faculdades são públicas”, exemplifica. Tal visão acaba sendo nociva, segundo a professora, quando uma unidade pública está sendo gerida por uma Organização Social de Saúde (OSS) por exemplo.
“Os médicos chegam preocupados com as metas que têm que bater”, diz, mostrando o desalinhamento de propósito entre os agentes.
Tanto para Almeida como para Mere Júnior, a solução passa pela mudança do modelo assistencial, pois hoje procedimentos e exames geram demanda, distorcendo a lógica do cuidado integral – conceito que não acontece efetivamente em nenhuma das esferas.
“A cultura “hospitalocêntrica” afasta ainda mais o paciente privado do público”, ressalta o presidente da Abramge, defendendo que o Estado deve garantir os serviços, principalmente de média e baixa complexidade – maior gargalo do SUS – através da iniciativa privada. “Tem várias maneiras do governo fazer isso”.
Falar em parcerias entre o público e o privado, como é o caso das OSS, que tem aumentado no País, pode até soar como um caminho para a saída dos problemas. Entretanto, a discussão deixa clara que, enquanto não houver discernimento e um alinhamento entre o que tem e não tem valor, as barreiras que impedem o estabelecimento de uma saúde sustentável e de qualidade vão continuar.